Os próximos seis meses de presidência portuguesa da União Europeia trazem uma programação cultural diversa, com propostas de artes visuais, teatro, cinema e música em Lisboa, Bruxelas e outras cidades de todo o mundo, apesar de serem escassos os exemplos de objetos artísticos propositadamente encomendados para a ocasião.
Os artistas visuais Vhils e Bordalo II, a maestrina Joana Carneiro, o encenador Tiago Rodrigues e artistas visuais representados na Coleção de Arte Contemporânea do Estado, nomeadamente criadoras do sexo feminino, são alguns dos destaques.
As linhas gerais da programação foram apresentadas nesta terça-feira à tarde no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Na sala Almada Negreiros estiveram presentes a ministra da Cultura, Graça Fonseca; a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias; e o novo presidente do Instituto Camões, João Ribeiro de Almeida.
Entre 1 de janeiro de 20 de junho de 2021 Portugal assume a presidência do Conselho da União Europeia pela quarta vez, sucedendo à Alemanha e antecedendo a Eslovénia. A cerimónia oficial de abertura está agendada para 14 de janeiro precisamente no CCB, centro operacional da presidência (o CCB foi inaugurado em 1992 para acolher a primeira presidência portuguesa do então Conselho das Comunidades Europeias).
Exposição prevista para Lisboa não vai acontecer
Segundo a ministra da Cultura, estes seis meses de programação cultural vão custar ao erário público cerca de um milhão e 400 mil euros e do ponto de vista político a principal prioridade é a “recuperação e retoma dos setores culturais e criativos”.
“Tudo em 2021 terá de funcionar como um balão de oxigénio” para o tecido cultural português, disse a ministra. “Será muito importante esta dinâmica que vamos conseguir criar ao longo deste primeiro semestre. É uma forma de tornar mais presente a importância que a cultura tem na nossa vida. É também um momento muito importante do ponto de vista político, [com] a discussão sobre uma Europa resiliente, sobre um novo ciclo de financiamento.”
Questionada sobre se o Ministério da Cultura equacionou encomendar propostas artísticas, de raiz, de propósito para a presidência portuguesa da UE, Graça Fonseca respondeu com o exemplo do concerto inaugural de fado e orquestra, com a maestrina Joana Carneiro e direção artística de Elisabete Matos (diretora artística do Teatro Nacional de São Carlos).
“O concerto inaugural terá em palco fadistas acompanhados da Orquestra Sinfónica Portuguesa, os arranjos são originais e todo o concerto foi especificamente desenhado e encomendado para o momento inaugural. A exposição em Bruxelas e a forma como vai ser apresentada a obra das artistas, tudo foi feito de propósito” para a ocasião, justificou.
Já se sabia que no âmbito da presidência portuguesa o Ministério da Cultura planeava uma “grande exposição” em Bruxelas de mulheres artistas, com curadoria de Helena Freitas. Era igualmente conhecido, e assim foi divulgado por Graça Fonseca em julho, que esta programação incluiria uma outra “grande exposição” em Lisboa com as 65 obras de arte contemporânea compradas este ano pelo Estado, mais as 21 obras adquiridas no ano passado. Ou seja, obras da chamada Coleção da Secretaria de Estado da Cultura, atual Coleção de Arte Contemporânea do Estado, iniciada em 1976 e hoje dirigida pelo historiador David Santos — a mesma que esteve sob os holofotes há alguns meses devido ao presumível desaparecimento de dezenas de objetos (94 podem ter sido furtados e 18 têm localização incerta).
Governo comprou 65 obras de artistas portugueses e vai mostrá-las em Lisboa no início do próximo ano
Porém, até agora, não havia informação sobre datas e locais. Nesta terça-feira ficou a saber-se que afinal a exposição em Lisboa não terá lugar e que a exposição em Bruxelas, intitulada Tudo o Que eu Quero: Artistas Portuguesas de 1900 a 2020, ocorrerá no Centro de Belas-Artes – Bozar, de 26 de fevereiro a 23 de maio. A mostra tem curadoria de Helena Freitas e Bruno Marchand e poderá também ser vista pela internet através da plataforma Google Arts & Culture.
“A importância de trabalhar melhor a igualdade de género e a visibilidade e conhecimento das mulheres artistas é algo que nos tem orientado, algo que recebemos de testemunho da presidência alemã”, justificou a ministra, em referência ao facto de a exposição em Bruxelas se focar em criadoras do sexo feminino. “Será um mote muito importante ao longo deste semestre europeu. Não podemos nem devemos partir do pressuposto de que tudo está adquirido e consolidado” na área da igualdade de género, destacou.
A propósito da ausência da exposição prevista para Lisboa, a titular da pasta da Cultura contropôs que os museus e monumentos públicos portugueses terão programas próprios feitos a pensar na presidência portuguesa. “Há várias exposições, mas a exposição fundamental de artes visuais é aquela que aqui referi: mulheres artistas de 1900 à atualidade”, sublinhou Graça Fonseca.
À margem da apresentação desta terça-feira, o Observador perguntou à ministra da Cultura se tinha novidades acerca do inquérito aberto em julho pelo Ministério Público, a pedido do Governo, para investigar o desaparecimento de obras da Coleção de Arte Contemporânea do Estado. Graça Fonseca remeteu esclarecimentos para mais tarde, por entender que a ocasião servia apenas para falar da programação cultural para os próximos seis meses.
Entretanto, fonte oficial da Procuradoria-Geral da República adiantou ao Observador que “a investigação prossegue”, mas está sujeita a segredo de justiça, pelo que o público não pode saber mais detalhes para já.
O que vai acontecer: principais destaques
O concerto inaugural, com Joana Carneiro, ainda não tem local definido mas sabe-se que vai ser transmitido pela RTP. Na qualidade de curador, Vhils irá apresentar a instalação de arte urbana e contemporânea Commotion, com 20 convidados no Edifício Justus Lipsius (sede principal do secretariado-geral do Conselho Europeu, em Bruxelas).
Bordalo II propõe Caravela Portuguesa, uma instalação de materiais desperdiçados que “dialoga com as prioridades da transição ecológica” e será exibida no Edifício Europa (onde se realizam as reuniões do Conselho), também na capital belga. Ainda no domínio das artes visuais, o historiador David Santos organizará a exposição Liberdade e a Europa: Uma Construção de Todos, com obras da Coleção de Arte Contemporânea do Estado e da Coleção do Parlamento Europeu (é este o local de apresentação).
Ao nível do cinema, estão previstos dois ciclos, um dos quais intitulado Os Mares da Europa, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. No domínio do teatro, Tiago Rodrigues, atual diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, vai estar no Bozar com a peça By Heart, uma das suas mais conhecidas criações. “Há outras componentes que ainda estão a ser fechadas, na área da dança, por exemplo”, referiu a ministra da Cultura.
[excerto de By Heart, de Tiago Rodrigues]
Presidência marcada pelos efeitos da pandemia
A secretária de Estado Ana Paula Zacarias destacou no CCB o “período bastante difícil e complexo” que o mundo atravessa, “marcado pelas consequências sócio-económicas da pandemia” e adiantou que, precisamente por isso, o lema da presidência portuguesa da UE será “tempo de agir por uma recuperação justa, verde e digital”.
“A questão da saúde vai estar muito presente”, disse. “A recuperação tem que apostar na resiliência económica e ao nível dos valores que sustentam a União Europeia”, nomeadamente o Modelo Social Europeu.
Por seu lado, o presidente do Instituto Camões declarou que “o planeamento e a negociação” da programação artística sob a sua alçada ocorreu “num contexto muito problemático, associado à conjuntura de emergência sanitária”, pelo que está ainda a “avaliar novas propostas” e até ao fim de dezembro terá um programa “mais estabilizado”.
A nível global, não apenas em Lisboa ou Bruxelas, haverá 75 “ações” culturais em 44 países, a maioria das quais na Europa: 34 “ações” em 23 estados, incluindo a Suíça ou o Vaticano, disse João Ribeiro de Almeida. São disso exemplo um concerto do maestro Rui Massena já em janeiro em Roma ou a exposição Europa, Oxalá no Africa Museum de Bruxelas, no MuCEM de Marselha e na Fundação Gulbenkian em Lisboa.
Segundo o mesmo responsável, a realização dos eventos terá como “condicionante” as “conjunturas sanitárias” nos diversos países.