Há fenómenos que não se anunciam. Quando nos deparamos com eles já são um acontecimento e só nos resta reagir e tentar perceber. Isto podia ser sobre a pandemia, mas estou a falar de um grupo chamado Sault e de dois álbuns extraordinários editados este ano: Untitled (Black Is) e Untitled (Rise). Não há como ignorá-los em 2020.
No universo da música e das artes, pop e não só, essas epifanias fazem parte da dinâmica que alimenta o mercado e os media. Não só os novos artistas são criativos nos argumentos para se fazer notar, como os media, tanto tradicionais como digitais, precisam de um fluxo regular de novidades e talentos que possam explorar e explicar. Foi sempre assim, com grandes estrelas como Elvis, Beatles ou Madonna, e também em movimentos ditos marginais como punk e hip hop.
Na era da internet, o processo multiplica-se infinitas vezes no multiverso das plataformas online, onde toda a música luta por visibilidade, usando os recursos disponíveis de forma o mais vantajosa possível. Às vezes, no meio de muitos, alguns destacam-se claramente. Nesse aspeto, os Sault até parecem estar de acordo com a norma, são um dos nomes que marca 2020, um caso raro de consenso transversal, graças a dois álbuns que misturam soul, jazz, funk, disco, house, afrobeat, breaks, spoken word e canções, para se concretizar em música emotiva e desafiante com mensagem interventiva. Tudo certo para ocuparem o lugar de revelação do ano.
[ouça “Untitled (Black is)” na íntegra através do YouTube:]
Só que os Sault não são novidade, já tinham dois álbuns (5 e 7, ambos de 2019) que, tendo passado relativamente despercebidos, são igualmente espantosos anunciando já o caleidoscópio de influências que sustentam os discos lançados este ano (se bem que 5 tenha mais notas punk funk do que qualquer outro). São prolíficos, sem dúvida, mas pouco se sabe deles. Na era do overload de informação e da sobre-exposição, é no mínimo bizarro que, na altura em que os Sault aparecem em tudo o que é listas de melhores do ano, uma pesquisa de imagens na internet, além das capas dos 4 discos (todas com fósforos ou mãos em fundo preto), mostre apenas fotos da região francesa com o mesmo nome.
Os Sault são enigmáticos e gostam disso. Pode soar um pouco duvidoso nesta altura da história. mas parece funcionar, colocando-os num patamar quase único no cenário atual: o do anonimato do artista mediático. Não há entrevistas, nem concertos, nem promoção… só existe a música e sua mensagem, e muita atenção concentrada neles. Não é a primeira vez que isso acontece, obviamente, nos anos recentes, basta pensar em Burial, produtor londrino de dubstep que conseguiu manter o anonimato durante algum tempo antes de ser “desmascarado”. O problema com Sault é que até se vai sabendo alguma coisa sobre quem são, e mesmo assim, não se chegam à frente para permitir saber mais..
Mas afinal, o que se sabe sobre Sault? É certo que Inflo, ou melhor, Dean Wynton Josiah, produtor de Londres que trabalhou com Jungle, Little Simz e Michael Kiwanuka, por exemplo, é quem está por detrás do projeto. Kadeem Clarke, Cleo Sol, também londrinos, e Kid Sister (Melissa Young), rapper de Chicago, completam o núcleo duro mas, na verdade, os discos não têm grande informação. Depois há convidados, Michael Kiwanuka é a estrela, dá voz a “Bow”, uma das canções mais infecciosas e militantes de Untitled (Black Is). Foi com este disco, lançado pouco mais de um mês após a morte, em maio, de George Floyd, que os Sault começaram de facto a fazer-se notar.
[ouça “Untitled (Rise)” através do YouTube:]
Inicialmente a edição foi só digital, durante algum tempo esteve disponível no Bandcamp com preço simbólico à escolha, antes de ser editado em duplo vinil. Talvez tenha sido o confinamento e o impacto brutal das imagens de Floyd, asfixiado pelo joelho de um polícia, em Minneapolis, as manifestações e motins que se seguiram, que fizeram os Sault emergir da penumbra e ascender ao pódio de heróis. Untitled (Black Is) levanta o punho em nome do movimento Black Lives Matter, está bem expresso na capa, e a música corresponde. É um disco profundamente atual, mas na essência é intemporal, tanto a apontar o dedo ao racismo sistémico, na tradição da soul política dos anos 60 e 70 de gente como Gil Scott Heron, como na assimilação de todo o espectro da música negra e suas transmutações, soul, funk, afrobeat, disco, house, hip hop e por ai fora, um processo contínuo que ainda hoje fornece visões sonoras de futuro.
Untitled (Black Is) é um disco de canções magníficas que falam de coisas graves, como “Wildfires” ou “Sorry Ain’t Enough”, delírios rítmicos de afirmação de black power como “Bow”, interlúdios e colagens de rádio de consciencialização e protesto. Nunca perde o foco nem a militância, mas não se prende a fórmulas únicas, experimenta, cita o passado e inventa sobre ele. Untitled (Rise), o seu sucessor, outro álbum duplo em vinil, editado em setembro, partilha o mesmo universo de referências e os mesmos métodos, funciona em continuidade narrativa, mas aproxima-se mais da pista de dança, investindo no boogie e até na batucada. Continua a falar de coisas sérias, a ser um disco de luta, mas o ambiente é mais de festa. Foi lançado poucos meses depois de Untitled (Black Is), sublinhando a mensagem de afirmação dos negros contra a opressão, e impulsionou ainda mais o processo de merecida canonização dos Sault.
Face a este ritmo de produção e à espantosa pertinência e criatividade do que é lançado, é fácil perceber que os Sault estão demasiado ocupados para fazer promoção ou tirar fotografias. Numa altura em que todos somos obrigados a conter a vida social com máscaras e confinamentos, um grupo que se esconde por convicção é fascinante e de certo modo inspirador. Na verdade, o mais importante deveria ser sempre a música, e neste caso, trata-se de música extraordinária que fala de questões urgentes.