“Tudo isto começa quando duas células se juntam: uma da mãe e uma do pai. Uma vida começa nesse momento, tornando-se eventualmente no Beethoven, no Einstein ou no Churchill. Como é que fazemos isso?”
Alcino Silva, neurocientista da Universidade da Califórnia, lança uma das perguntas fundamentais que abre o primeiro episódio da nova série da RTP1, “Deus Cérebro” , que se estreia esta segunda-feira às 22h45. Pode parecer estranho ver um cientista com tantas dúvidas existenciais, mas a verdade é que a ciência é a arte da tentativa e do erro. E o fascínio está no caminho até à resposta.
Tal como Alcino Silva, vários neurocientistas e neurologistas do mundo inteiro tentam aqui explicar a complexidade e o mistério à volta do cérebro. A ideia partiu de Anabela Almeida, jornalista e guionista deste projeto produzido pela Panavídeo e realizado por António José de Almeida. Ao todo foram 29 pessoas entrevistadas, onde se inclui o músico Wim Mertens ou o campeão de xadrez Garry Kasparov. E caso os assuntos científicos não lhe interessem muito, fica, pelo menos, a saber o seguinte: pode-se, de facto, morrer de amor. Quem o confirma é o neurocientista António Damásio.
[o trailer de “Deus Cérebro”:]
Sendo a ciência uma das áreas mais questionadas dos últimos tempos, especialmente por causa das notícias falsas, uma série que se concentra neste universo e passa na estação pública de televisão pode ajudar a desmistificar algumas ideias difundidas nas redes sociais. Pelo menos, assim acredita o realizador. “O principal desafio foi fazer uma série documental que descodificasse a linguagem dos cientistas e que fosse, ao mesmo tempo, visualmente apelativa para chegar ao maior número de pessoas. A mim ajudou-me a clarificar mais ainda que a ignorância é o pior inimigo da humanidade e a melhor arma é mesmo a cultura e a educação”, conta ao Observador.
António José de Almeida, que não tem “pachorra nem tempo a perder com a internet das teorias da conspiração”, foi retirando algumas lições importantes à medida que ia filmando um projeto que demorou três anos a chegar à luz do dia. Por exemplo, perceber o impacto da música no cérebro, perceber que este órgão queima 25% das calorias que comemos ou descobrir que sim, é possível morrer de amor. “Perguntámos ao António Damásio se essa era uma possibilidade, a resposta foi afirmativa. Este é um dos exemplos do poder que as emoções e os sentimentos têm no nosso centro de comando”, diz.
Quanto ao poder da música, o realizador conta uma pequena história num dos episódios, que surpreenderá os mais acérrimos defensores da ciência. Passou-se durante um estudo de António Damásio com a Orquestra Filarmónica de Los Angeles onde foi proposto que jovens e crianças de bairros problemáticos estudassem música clássica diariamente. Cinco anos depois, os resultados estavam à vista: por um lado, o cérebro desenvolveu-se muito mais rapidamente e, por outro, passaram a ter um comportamento mais altruísta e calmo. “Há sinais de que a música apareceu ainda antes da linguagem e não há nenhuma civilização onde a música não estejas presente. Estas crianças evidenciaram uma maior maturidade em relação aos que não tiveram esta aprendizagem”, diz.
A verdade é que só nos últimos 20 anos se descobriu mais sobre o cérebro do que em toda a história da humanidade. E até os entrevistados de “Deus Cérebro” ficaram surpreendidos com o feito, já que o cérebro consegue estar “em pé de igualdade com a complexidade do próprio universo”, conta o realizador, que também é professor na ETIC e na Restart e já fez documentários como “2077 — 10 segundos para o futuro”.
Mas todo esse conhecimento pode desaparecer ou regredir se as gerações não se continuarem a educar. “Como diz a cientista Suzana Herculano-Houzel no último episódio, ‘basta uma geração sem ir à escola para regressarmos às nossas bases biológicas, para perdermos tudo aquilo que foi acumulado e transmitido ao longo de milhares de gerações’”, afirma. Portanto, para não criarmos mais pessoas que duvidam da própria ciência, é preciso não só investir na ciência, mas também garantir que as escolas reforçam o seu papel civilizacional que não deixa que os mais jovens escapem para as malhas perigosas das redes sociais, defendem os autores da série.
Por agora, ficam a faltar três episódios. Mas “Deus Cérebro” já está a ser distribuída internacionalmente sendo que, durante a sua produção, passou por onze países, desde Boston, Barcelona, São Francisco, Genebra ou Ilha de Skye. Mas o melhor seria chegar às escolas e universidades. Até porque ninguém quer ficar como as estátuas. “Sem cérebro, ficaríamos iguais a elas. É assim que termina a série”, finaliza o realizador. Foi um spoiler, sim, mas por uma boa causa.
Mas ainda temos mais um: a trilha sonora forte e apoteótica que percorre esta série é assinada por Carlos Maria Trindade, parceiro de António José de Almeida na mítica banda “Heróis do Mar”, durante oito anos. O realizador na bateria, Carlos Maria Trindade nas teclas. Esta surpresa já o cérebro não conseguiu antever. Há mesmo mistérios que ainda estão por desvendar.