“É uma junção do talento, da sabedoria e da garra. Amanhã, Portugal será do Palmeiras. É verdade que já houve um treinador que abriu as portas para nós. Vai ser uma mistura, um português, um paraguaio, os brasileiros…”

Abel Ferreira está longe de Portugal. Tem um oceano pelo meio, está numa realidade futebolística completamente diferente e deixou o panorama português antes de chegar a um “grande”, depois de um enorme trabalho no Sp. Braga e para assumir o projeto dos gregos do PAOK. Chegou ao Brasil e ao Palmeiras em outubro e nos meses seguintes fez questão de ir alimentando um sonho que de difícil passou a possível, de possível passou a provável e de provável passou a certo. Este sábado, o Palmeiras de Abel Ferreira estava na final da Taça Libertadores. Um Palmeiras que é da maior cidade da América do Sul, São Paulo, e que tem cerca de 10 milhões de adeptos. Mas este sábado, e tal como Abel disse na antevisão, o Palmeiras tinha mais de 10 milhões de adeptos extra: os 10 milhões de portugueses que viam um treinador português, novamente, no jogo mais importante do futebol sul-americano.

Ficha de jogo

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Palmeiras-Santos, 1-0

Final da Taça Libertadores

Estádio Jornalista Mário Filho (Maracanã), no Rio de Janeiro

Árbitro: Patricio Loustau (Argentina)

Palmeiras: Weverton, Marcos Rocha, Luan, Gustavo Gómez, Viña, Danilo, Zé Rafael (Patrick de Paula, 78′), Gabriel Menino (Breno Lopes, 85′), Raphael Veiga, Rony (Felipe Melo, 90+12′), Luiz Adriano

Suplentes não utilizados: Jaílson, Renan, Empereur, Santos, Kuscevic, Mayke, Scarpa, Lima, Willian

Treinador: Abel Ferreira

Santos: John, Pará (Bruno Marques, 90+12′), Peres, Lucas Veríssimo, Jonatan (Wellington, 90+3′), Alison, Sandry (Lucas Braga, 73′), Pituca, Soteldo, Marinho, Kaio Jorge (Madson, 90+3′)

Suplentes não utilizados: Vladimir, João Paulo, Luiz Filipe, Jean Mota, Laércio, Guilherme Nunes, Arthur Gomes, Vinícius, Wellington Tim

Treinador: Cuca

Golos: Breno Lopes (90+10′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Lucas Veríssimo (9′), a Gómez (35′), a Viña (58′), a Soteldo (90+8′), a Alison (90+13′)

Contra o Santos, outra equipa de São Paulo, e no Maracanã, no Rio de Janeiro, Abel Ferreira podia então suceder a Jorge Jesus, que conquistou a última edição da Libertadores com o Flamengo em 2019. Numa final adiada alguns meses e ainda respetiva a 2020, devido ao reagendar dos calendários na sequência da pandemia, o Palmeiras terminava um caminho onde nas fases a eliminar afastou o Delfín do Equador, o Libertad do Paraguai e o River Plate da Argentina e perseguia um objetivo que escapava ao clube desde 1999. Há 21 anos e pela mão de Luiz Felipe Scolari, o clube de São Paulo conquistou a Libertadores ao vencer na final o Deportivo Cali, da Colômbia, e não mais voltou a ganhar a competição. Até aí, no facto de procurar levar o Palmeiras à segunda Libertadores da sua história, Abel cruzava com Jesus — que também levou o Flamengo à segunda Libertadores do clube do Rio de Janeiro.

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Na antevisão da partida, Abel não esqueceu o “respeito” pelo Santos mas lembrou que “cada jogo tem uma história”. “Eu vou fazer o que sempre fiz. Preparar-me bem, os jogadores, estar atento aos detalhes. Não vou fazer o que não sei fazer, vou seguir os mesmos rituais, acreditar em quem tem de acreditar: os jogadores. O adversário merece respeito, fez um belo trabalho ao longo do trajeto. Temos de ser fiéis à nossa forma de atacar, de defender. Não há outra forma, é a nossa identidade. (…) Do outro lado vai estar um rival que vai querer tanto quanto nós. Que no final possamos seguir o plano de jogo e sermos vencedores. É um jogo só, o nosso objetivo além de chegar é chegar e ganhar”, explicou o treinador português, que reconheceu estar “ansioso”. “A ansiedade é normal, comigo, com Tite, com Klopp, Mourinho, Messi, Ronaldo. É normal (…) Não muda nada, estamos a trabalhar, a descansar bem, para fazer um grande jogo. A ansiedade está aí, mas vamos desfrutar o momento. (…) Há pressão, ansiedade, mas tratamos de desfrutar o momento. Se um jogador disser que não está ansioso, é mentira”, atirou Abel, que durante os últimos meses garantiu sempre que a vantagem do Palmeiras era a “mentalidade”.

Afinal, do outro lado, estava um Santos que já tinha três Libertadores no palmarés: e com nomes gigantes associados a essas conquistas. O clube de São Paulo — que outro português, Jesualdo Ferreira, orientou até agosto — conquistou a competição em 1962 e 1963, ambas com Pelé, e voltou a ganhar o título em 2011, com Neymar enquanto figura de proa. A experiência estava também no banco de suplentes: Cuca, o treinador, venceu a Libertadores em 2013 com o Atl. Mineiro, já treinou inúmeros clubes incluindo Palmeiras, Flamengo, Fluminense, São Paulo, Grémio e Cruzeiro e é um dos técnico atualmente em atividade que maior conhecimento tem do futebol brasileiro. Mas este sábado, no Maracanã, Cuca não acreditava somente na experiência e surgia com uma camisola com Jesus e Maria.

Sem o avançado Gabriel Verón, que sofreu uma lesão muscular, Abel lançava Rony, Gabriel Menino e Luiz Adriano no ataque. Do outro lado, o destaque ia principalmente para Marinho e Soteldo, os dois elementos mais desequilibradores da equipa de Cuca. Lucas Veríssimo, central do Santos, realizava a última partida pelo clube antes de viajar para Portugal para reforçar o Benfica. As últimas palavras de Abel antes do apito inicial, a cerca de uma hora do início do jogo, foram simples: “Falta a última peça e a última peça é hoje”. Afinal, e tal como a comunicação da Libertadores frisou durante as últimas semanas, esta era a final de outro mundo.

Na primeira parte, o jogo demorou a encarreirar. Os primeiros 20 minutos, principalmente, foram disputados com muitas paragens, muitas quezílias entre os jogadores e muita emoção à flor da pele. As duas equipas estavam encaixadas na zona do meio-campo, totalmente amarradas e não existiam grandes espaços para desequilibrar no último terço adversário. Cuca apanhou um susto com uma lesão de Marinho, o jogador em evidência no Santos, mas o brasileiro recuperou e voltou à partida. As melhores ocasiões da primeira parte acabaram por pertencer ao Palmeiras: Gómez cabeceou por cima na sequência de um canto (14′), Raphael Veiga atirou cruzado e ao lado depois de um bom passe de Marcos Rocha (36′) e Rony falhou a assistência decisiva para Luiz Adriano depois de um lance individual brilhante na direita (44′).

O primeiro tempo, porém, acabou sem golos e sem remates enquadrados, depois de 45 minutos disputados com grande intensidade mas pouca qualidade. A melhor história até ao intervalo, numa espécie de nota de reportagem, foi mesmo o alerta feito pelo speaker já perto do fim da primeira parte: no Maracanã, pedia-se às 5 mil pessoas presentes nas bancadas, entre comunicação social, staff e convidados de clubes e patrocinadores, que mantivessem o distanciamento social e colocassem as máscaras.

A segunda parte começou muito semelhante à primeira, com múltiplas faltas, diversas paragens e sem espaço para grandes desequilíbrios. À passagem dos dez minutos iniciais, porém, ficou notório que o Santos tinha voltado melhor do intervalo e estava com uma dinâmica superior — sempre, quase sem exceção, organizada por Marinho, o elemento que está claramente num nível superior ao dos restantes colegas. O avançado de 30 anos, sempre na faixa direita, ganhava quase todos os duelos e criava espaços entre linhas para depois realizar o último passe. Foi dos pés de Marinho que saiu o livre que deu a melhor oportunidade do Santos até então, com Lucas Veríssimo a aparecer no poste mais distante e nas costas da defesa adversária a cabecear ao lado (59′).

A oportunidade da equipa de Cuca espicaçou o Palmeiras, que acordou para a segunda parte e voltou a equilibrar as ocorrências. Veiga esteve muito perto de abrir o marcador, com um livre direto que passou ligeiramente por cima da trave (64′), e o conjunto orientado por Abel assentava na organização defensiva para depois lançar o ataque — a prioridade era parar a movimentação ofensiva do Santos e só a partir daí era possível procurar a profundidade, principalmente a partir das alas, com Menino e Rony. A segunda parte estava melhor, apesar de as inúmeras paragens e confrontos continuarem uma realidade, e ficava a ideia de que qualquer uma das equipas poderia chegar ao primeiro golo do jogo.

Cuca foi o primeiro a mexer, a pouco mais de 15 minutos do fim do tempo regulamentar, e trocou Sandry por Lucas Braga. A entrada do jogador de 24 anos acabou por agitar as águas: o ala apareceu em espaços que não estavam a ser preenchidos, arrastou defesas consigo em várias jogadas e abriu caminhos aos colegas de equipa, que até aí tinham as vias sempre obstruídas. Foi a partir desse pânico criado por Braga na primeira linha defensiva do Palmeiras que o Santos chegou a duas grandes oportunidades, ambas no mesmo lance. Pituca rematou cruzado a partir da direita e viu Weverton defender para a frente, com Jonatan a aparecer à entrada da grande área com um grande pontapé que passou ao lado (77′).

A perceber que a equipa tinha perdido o controlo sobre as ocorrências, Abel Ferreira fez duas substituições em menos de dez minutos e tirou Zé Rafael e Gabriel Menino para lançar Patrick de Paula e Breno Lopes. Duas alterações que arriscavam pouco e que pretendiam, acima de tudo, refrescar os corredores da equipa de forma a travar o melhor período do Santos na partida. A partir da linha técnica, ouvia-se o pedido de Abel: “Vamos lá, família!”. E a família fez um milagre.

O quarto árbitro levantou a placa e decretou oito minutos de tempo extra. Cuca, junto à linha técnica, tentou atrasar um lançamento do Palmeiras e agarrou na bola — e mal sabia que tinha acabado de deitar tudo a perder. Marcos Rocha tentou tirar a bola, o treinador do Santos caiu e instalou-se a confusão entre jogadores e equipas técnicas: Cuca foi expulso, Soteldo e Marcos Rocha viram o cartão amarelo. Quase de imediato, no primeiro lance depois de Cuca subir para a bancada, fez-se história. Rony tirou um cruzamento perfeito a partir da direita e Breno Lopes, ao segundo poste e com um grande cabeceamento, deu a Libertadores ao Palmeiras pela segunda vez na história (90+10′).

Depois de Jesus, Abel. O treinador torna-se o segundo português a conquistar a maior competição de clubes da América do Sul e iguala o feito de Luiz Felipe Scolari, que em 1999 levou o Palmeiras até à vitória na Libertadores. Abel Ferreira cruzou o Atlântico porque lhe deram uma equipa. No fim, meses depois, Abel Ferreira foi campeão porque criou uma família. E a prova disso é a forma como o treinador entrou dentro de campo depois do apito final, cumprimentou cada jogador um a um e ainda festejou com os filhos de cada atleta, em imagens que ficam para a história. Este sábado, a família de Abel fez história.