Fazer versões de músicas tradicionais turcas é capaz de ser, à partida, um dos caminhos estrategicamente mais estapafúrdios para uma banda com sede em Amesterdão afirmar-se na indústria musical com álbuns e canções. Há alguém bom do juízo, com a cabeça no sítio, que alguma vez vá pensar “eu singrava no mundo aqui a partir de Amesterdão era se fizesse uma banda e tocasse covers de canções turcas?”.

Se calhar não há. E se calhar é por não ter sido esse o raciocínio de Jasper Verhulst, Ben Rider e Nic Mauskovic, os três carolas que acharam que seria boa ideia fazerem uma banda que tocasse e sobretudo reinventasse a música folclórica popularizada na Turquia nos anos 70 — dando-lhe tonalidades modernas —, que uma banda chamada Altın Gün nasceu e está a singrar. Porque para falar de Yol, o terceiro e novo álbum do grupo, sucessor de On (2018) e Gece (2019) e acabado de editar, é preciso recuar a esta estupenda ideia que desembocou aqui.

A capa do álbum novo dos Altın Gün, editado esta sexta-feira (26 de fevereiro)

Provavelmente se tudo tivesse sido estrategicamente delineado, pensado ao detalhe para efeitos de grande sucesso comercial, o caminho seguido teria sido outro. Mas foram o interesse e a sedução da música turca antiga que fizeram estes três rapazes, que tocavam juntos na banda do músico, cantor e compositor holandês Jacco Gardner, chamarem mais três pessoas para um sexteto.

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Os Altın Gün começavam a formar-se, mais pelo entusiasmo de Jasper Verhulst do que pelo dos companheiros de parelha (que ainda assim acederam e concordaram). Aquando de uma ida à Turquia para tocar com Jacco Gardner, Jasper, que começou por deparar-se e entusiasmar-se com a música turca quando ouviu um disco de 1976 da guitarrista, cantora e compositora turca Selda Bagcan, foi a lojas de discos e ficou maravilhado com as antiguidades que descobriu. E rapidamente teve a ideia de fazer uma banda de música folclórica, daquelas que toca e interpreta canções “nacionais” de um determinado sítio e de um determinado período — música feita e conhecida num dado país mas não fora dele.

Jasper Verhulst pegou no baixo elétrico e convenceu Ben Rider a pegar na guitarra e Nic Mauskovic, que entretanto já saiu, a pegar nas baquetas da bateria. Aos três juntaram-se Gino Groeneveld, um percussionista que tocava numa banda de afrobeat (a estética com origem no Gana e Nigéria que mistura jazz, funk e soul com ritmos africanos) de Amesterdão, e dois músicos e cantores turcos: o vocalista e instrumentista Erdinç Ecevit — toca sintetizador e o instrumento de cordas saz, popular na Turquia e semelhante ao alaúde — e a cantora e teclista Merve Dasdemir. Em 2019 juntou-se o baterista Daniel Smienk, para substituir Nic Mauskovic.

Os dois elementos turcos eram absolutamente necessários, pela destreza rítmica e dotes vocais mas sobretudo pela nacionalidade e idioma. O anúncio de recrutamento até foi publicado nas redes sociais. Jasper, o baixista, tinha uma ideia muito compreensível: não era que precisassem de elementos que falassem turco para terem um ar respeitável e respeitador — embora desse certamente jeito perceber o que os turcos que os ouvem lhes diziam depois daquelas coisas a que antigamente chamávamos concertos —, precisavam era de ter alguém que conseguisse tocar saz e sobretudo cantar estas canções. Até porque Jasper, Ben Rice e o antigo baterista da banda recentemente substituído não percebiam patavina das letras das canções turcas que queriam tocar. E parecendo que não dava jeito saber que palavras estavam a ser ditas nas canções.

Que mundo novo é este supostamente feito do passado?

Os Altın Gün são uma banda recente: o primeiro disco do grupo saiu em 2018 e o segundo em 2019, tendo essa segunda coleção de canções sido nomeada para um prémio Grammy, uma espécie de Óscares da indústria musical dos EUA, na categoria de “Melhor Álbum de World Music”.

Gece, o tal disco de 2019 que estava nomeado, não venceu o Grammy. Ganhou-o Angelique Kidjo com o seu álbum Celia, tendo a cantora dedicado a vitória a outro dos nomeados que também saiu de mãos a abanar, Burna Boy, autor do aclamado e popular African Giant. Mas as dez canções de Gece catapultaram internacionalmente os Altın Gün, tirando-os do hiper-nicho em que estavam — suficiente ainda assim para passagens por Portugal em 2018, para concertos no Musicbox em Lisboa (sala a que regressaram em 2019), no Theatro Circo em Braga e no festival açoriano Tremor — e dando-lhes notoriedade mundial no campeonato da música alternativa.

Veja-se o ano de 2020 que tinham preparado (segundo a publicação musical norte-americana Billboard) não fosse a pandemia da Covid-19 ter-lhes estragado os planos: iam estrear-se no festival Coachella e trabalhar na gravação de um terceiro álbum nuns estúdios em Malibu, na Califórnia. Acabaram retidos e confinados em casa, não sem produtividade (já lá iremos).

[os Altın Gün ao vivo no Eurosonic deste ano:]

Era fácil perceber o apelo de Gece, o álbum que firmou em definitivo os Altın Gün no panorama musical depois de uma promissora estreia com o disco On. A premissa “versões de músicas turcas dos anos 1970” pode soar aborrecidíssima e desinteressante (“porque não ouvir antes os originais?”) a alguns, mas quando se põe esse disco a tocar não há grande volta a dar: de repente entramos num mundo de guitarras, distorção, ritmos e vozes turcas, de rock e funk e soul, de um psicadelismo oriental, de ginga e groove a remeter-nos para latitudes que não conhecemos e a querer despertar-nos as ancas sugerindo-lhes que esta maravilha elas ainda não conheciam.

Na sua base, o truque dos Altın Gün é na verdade o segredo para a afirmação musical por estes anos de projetos que não são nem ingleses nem americanos: a procura de um som ritmicamente estimulante que soe a algo que nunca ouvimos, que realmente só pudesse existir numa localização geográfica que não a sua.

É o mesmo truque que fez com que uma coisa chamada blues do deserto passasse a ser apreciada na Europa, que contribuiu para a febre e o entusiasmo mundial com o reggae aqui há uns anos, que fez com que estéticas como o funk brasileiro de favela chegassem aos tops dos Estados Unidos da América nos últimos anos, que pôs Rosalía ou os gingões do reggaeton como figuras de proa da música mundial destes tempos, que fez Madonna enamorar-se por Dino D’Santiago e pelos sons da Lisboa crioula: a sensação de que a música em questão é diferente de toda a música americana e inglesa, que isto é realmente alternativo à pop anglo-saxónica que americanos e ingleses não precisam de ouvir noutros lados porque já a têm em casa.

Todos esses movimentos musicais têm públicos e estéticas musicais muito distintas, relacionando-se de formas diferentes — mais próximas ou mais distantes — com as fórmulas variadas da canção popular não erudita que britânicos e americanos exportam como ninguém para o mundo e que vão da pop ao rock, da soul ao country e à folk local, dos blues ao hip-hop.

Mas vários anos depois de assistirmos em vários países a tentativas por um lado de mimetização da música mais popular nos EUA e Reino Unido e por outro de fazer world music tradicional sem quase nada acrescentar de novo ou diferente (que não o talento, maior ou menor, para a interpretação respeitosa), parece que hoje a estratégica até comercialmente mais lógica para singrar passa por apostar na diferença e na originalidade. Que uma banda de covers de música tocada e cantada há muitos anos as tenha, podendo até ensinar cantores e bandas com canções feitas de raiz a serem realmente distintivos, é uma belíssima ironia. Mas falar de covers ou versões talvez até seja desajustado quando as versões são assim, tão próprias e descoladas do original.

As principais influências, de Neşet Ertaş a Selda Bagcan

Para este novo álbum Yol, o processo de escolha das canções a tocar e transformar não foi muito diferente do método usado nos projetos antecessores. Nos Altın Gün quem escolhe invariavelmente que repertório antigo é recuperado e reciclado é invariavelmente ou Jasper Verhulst, o geek e melómano de serviço e o grande definidor dos rumos da banda, ou os dois cantores e instrumentistas turcos recrutados pelo baixista para fazer este sexteto.

De alguma maneira, esta diferença de origens, latitudes e contextos sociais e geográficos é benéfica. Por um lado, Jasper Verhulst ouve as canções turcas e entusiasma-se com elas como alguém que não as conhece bem e não fala a língua o fará, caso tenha um gosto musical semelhante. Ou seja, como qualquer fã do universo musical explorado pelos Altın Gün que não seja turco.

A relação de Jasper com a música turca que ouve e que depois acaba por gravar é, já o disse em múltiplas entrevistas, sobretudo rítmica, melódica e harmónica: começa por não fazer ideia alguma do que a banda ou o cantor que descobriu está a cantar, do modo como os autores que lhe passam pelos ouvidos são vistos no país em que cantavam, da fama (boa ou má) que têm, das palavras que usam. Por outro lado, os dois cantores e instrumentistas turcos da banda conhecem a música que entusiasma Jasper, sabem que contexto teve, o que significa, se é bem ou mal vista — e o equilíbrio entre as duas coisas apura o repertório, separa trigo do joio.

Entre Jasper, Merve Dasdemir e Erdinç Ecevit, o trio-âncora dos Altın Gün, há algumas referências comuns: a já citada Selda Bagcan, claro, mas também os rockers turco Barış Manço e Erkin Koray e sobretudo o cantor, compositor, letrista e instrumentista Neşet Ertaş, figura maior da canção do país, bardo folk premiadíssimo, autor de composições que tantos interpretaram e tocam à sua maneira na Turquia.

Estas são referências, bases rítmicas e históricas que unem os principais ‘decisores’ — aqueles que mais intervenção têm na escolha da música a reciclar e renovar — dos Altın Gün. Para o ouvinte, conhecer as influências é interessante mas não essencial: a música que os seis fazem não presta excessiva reverência às versões antigas e pode ser ouvida como nova, como música realmente original e desprendida das suas referências. Já era um pouco assim depois dos discos anteriores. Agora, com Yol, é-o mais do que nunca.

Um geek de Amesterdão descobre-se numa loja de discos da Turquia

A pandemia travou as ideias de gravar nos Estados Unidos da América e de ir tocar ao festival Coachella, mas não de fazer música. Jasper Verhulst, Ben Rider, Daniel Smienk, Erdinç Ecevit, Gino Groeneveld e Merve Dasdemir ficaram remetidos a casa, nem todos no mesmo país, mas encontraram uma forma de continuar a fazer música e de gravar canções para um disco novo: uma pasta Dropbox e instrumentos eletrónicos — o Omnichord e a drum machine Roland 808 à cabeça — contornaram as distâncias.

Se os seis membros dos Altın Gün se tivessem podido juntar em estúdio, trabalhando e gravando as canções juntos, é provável que o terceiro e recém-editado álbum da banda soasse a outra coisa, talvez seguisse a toada do anterior (e bem-sucedido) Gece. Mas não foi o caso: os riffs de guitarra elétrica deixaram de ter tanto peso, as ferramentas eletrónicas tornaram-se motor principal de composição (as canções gravadas coletivamente em estúdio foram a exceção mais do que minoritária), o funk e o rock perderam a hegemonia para a synth-pop e este caldeirão psicadélico desagua agora numa discoteca turca imaginária do final dos anos 70 e início dos anos 80.

É uma discoteca que nunca existiu, porque as semelhanças das canções dos Altın Gün com os temas originais que foram alvo de versões são poucas — e esta música nunca existiu naquele tempo, embora também não seja só do presente. No site da discográfica norte-americana que edita o disco, a ATO Records, a teclista e cantora Merve Dasdemir é citada dizendo: “Talvez tenhamos ido um pouquinho longe demais”. Ora Merve Dasdemir, que cresceu na Turquia e conhece perfeitamente estas canções, sabe do que está a falar. E se isto está dito num comunicado promocional de apresentação do álbum é porque os Altın Gün não querem esconder que levaram as canções antigas em que pegaram para patamares retro-futuristas, sem tempo nem espaço.

Este Yol soa menos ao passado, soa menos a Turquia — embora seja evidente, pelas letras e pelo tom das canções, de onde vem tudo isto — e soa mais a uma espécie de ficção científica com uma banda sonora de um tempo que poderia ter existido mas não se materializou nunca, um momento sem cronologia feito de histórias antigas e sons modernos.

É tudo percetível logo em “Ordunun Dereleri”, o segundo tema do disco e um dos singles do álbum, onde os sintetizadores entram lustrosos, a canção hipnótica a transportar-nos para outras paragens como sempre acontece com os Altın Gün — mas desta vez a transportar-nos para uma espécie de passeio noturno com um carro modernaço por uma cidade imaginada, meio caminho entre a pop eletrónica e notívaga da Europa mais ocidental e as paisagens rítmicas e líricas mais orientais. A publicação musical Gigwise descrevia-a como espécie de “banda sonora oficial alternativa de um Drive [o filme] rodado em Istambul”. Parece-nos bem.

À terceira canção, “Bulunur Mu”, percebemos que os Altın Gün também estão mais pop. Não falamos de pop radiofónica e universal (cantar em turco seria coisa para complicar sempre ambições megalómanas, de conquista de massas), mas de pop precisa, com distorção fantasmagórica lá pelo meio mas andamento festivo, sintetizadores alegres e um tom desempoeirado. Parece que a cantiga foi escrita pelo bardo das composições folk turcas Neşet Ertaş e as semelhanças com a original, cantiga que ficaria muito bem num western antigo de baixo orçamento (e não o dizemos pejorativamente), atestam que Merve, que a canta, não estava a brincar quando falava em mudar o ambiente sónico das canções.

O batuque e o disco-funk e disco-rock orientais de “Hey Nari” (uma canção que originalmente será de Ali Ekber Çiçek) são uma maravilha de se ouvir. Em “Yüce Dağ Başında”, os ritmos entram com passo seguro e sem medo de efeitos sonoros foleiros na pista de dança, a batida borbulha e a cantora desinibe-se, muito acertadamente aliás porque — como explicava o Bandcamp em artigo recente — isto é uma canção “marota” em que uma pessoa pede a outra que apareça de madrugada em vez de noite, para poderem estar descansados a praticar o amor.

O ritmo dançante prossegue com “Kesik Çayır”, aquele “clap clap” eletrónico que parece palmas, a cantiga a avançar suave, ritmada, insinuante, espacial — o que diria Ertaş, que a cantou no seu tempo, desta transformação musical, deste ritmo de sunset-gostoso e de festa pós-noite já fora de horas? Mas atenção que ainda há uma “Kara Toprak” cheia de groove e ginga, tipo Istambul conhece Rio de Janeiro e juntos tomam um chope num bar noturno; uma “Sevda Olmasaydı”  a fazer ponte com o passado, a lembrar um pouco mais os Altın Gün de Gece; festa disco misturada com ecos da banda movida a guitarra em “Maçka Yollari”; e um início “sudamérica” em “Yekte” que depois se haverá de tornar ritmo serpeante com riffs de guitarra hipnóticos, espécie de psych-rock baklava.

Uma canção como “Esmerim Güzelim” (a que encerra o disco), por exemplo, dificilmente caberia nos álbuns anteriores destes seis rapazes turco-holandeses: ouvimos Merve Dasdemir cantar synth-pop noturna, pop melodicamente no osso que por certo se ouviria em Istambul entre o final dos 70’s e meados dos 80’s se as ferramentas eletrónicas à disposição e os modos de gravação já fossem estes.

Agora os Altın Gün já não estão situados no espaço e no tempo, já não são banda retro a adaptar às funcionalidades presentes o psicadelismo, a folk e o rock dançante e serpeante da Turquia dos seventies — a partir de Yol, podem ir para onde quiserem. Nós continuaremos na fila de entrada da festa.