As livrarias especializadas em banda desenhada têm resistido a um ano de pandemia de covid-19 e ao segundo confinamento, graças à fidelização dos clientes e a encomendas ‘online’, embora assumam quebras significativas.

À Lusa, as quatro principais livrarias especializadas do país relatam dificuldades em manobrar um mercado ‘online’ que exige mais mão de obra por menos faturação, por comparação à venda ao balcão, com os clientes fiéis e habituais, e a receção das remessas dos Estados Unidos a ajudarem a manter à tona os projetos.

Na lisboeta Kingpin Books há “decréscimos significativos mensais”, em termos de faturação, mas uma “postura extremamente ativa”, nas redes sociais e presença na Internet, tem ajudado, garante Mário Freitas.

“Desta vez, sem o problema que havia há um ano, sem quebra nos fornecedores ingleses e americanos, que então estiveram parados. Continuamos a receber quantidade muito significativa de encomendas ‘online’. (…) Uma coisa é vender ao balcão, outra é acondicionar uma encomenda, inserir informações no ‘site’ da transportadora. Faz com que uma venda demore mais quatro vezes do que em loja”, descreve.

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Mário Freitas não demora, também, a ‘atirar’ a outra diferença em relação ao primeiro confinamento geral, desta feita pelo lado negativo: a “situação abjeta e insultuosa de toda a gente poder vender livros desde que não seja uma livraria”.

“É verdadeiramente inacreditável, e é pena porque prejudica sobretudo pequenas livrarias. (…) É absolutamente vergonhoso, e demonstra que não há um dedo pensante, quer em quem nos governa quer na oposição que é feita”, critica.

Uma posição partilhada por Vasco Carmo, da Mundo Fantasma, no Porto, que usa a ironia para manifestar o desagrado e o quão “agastado” está com o que vê como uma diferenciação “inaceitável”.

“Nem eu nem ninguém consegue perceber estas medidas anacrónicas que o Governo tomou relativamente à venda de livros. Não temos o prestígio do El Corte Inglés, do Continente ou da Fnac. As livrarias tradicionais não têm tradições. Se vendesse raspadinhas ou jornais, não havia problema. Como não somos nenhuma destas livrarias históricas, estamos votados à condição de toda e qualquer livraria tradicional: vender online”, insiste, irónico.

A Mundo Fantasma enfrenta, de momento, “quebras substanciais”, mitigadas com clientes assíduos, quer pelas encomendas mensais quer pelo hábito de comprar livros nesta loja.

“A fidelização tem ajudado, mas as medidas são terrivelmente penalizadoras. Todos os meses recebemos novidades, e mais material. Como qualquer negócio, independentemente de ser uma loja de banda desenhada ou uma livraria tradicional ou outro negócio sujeito a restrições, há uma coisa que não desaparece, que são as despesas correntes”, afirma.

Na BDMania, em Lisboa, tem três dos quatro funcionários em ‘lay off’, e a venda ‘online’ não cobre uma situação “complicada” – a palavra mais comum no setor livreiro para descrever os últimos 12 meses.

Paulo Costa, livreiro e um dos fundadores da loja, lembra que os problemas sentidos com a Diamond, e a nova distribuidora da DC Comics, acabou por expor as fragilidades e a especificidade das livrarias que trabalham com este método.

A importação acontece de forma mensal, porque os custos seriam “tão elevados” que não compensariam, e a disponibilidade dos títulos com a porta fechada, na Internet, tem a concorrência de ‘gigantes’ internacionais como a Amazon ou a Book Depository, onde o ‘stock’ e a rapidez de envio são de outro nível.

Mais, recorda, enquanto outras livrarias, de fora do subsetor da banda desenhada, trabalham com livros “à consignação”, na BD tudo o que está nestas lojas “está pago”, não sabendo se os artigos se vendem “este mês ou daqui a cinco anos”.

“É um dos motivos por que uma loja como a nossa aposta mais na variedade do que quantidade. Prefiro ter um exemplar de 20 títulos diferentes do que ter 25 exemplares de cinco títulos”, refere.

Isto torna inviável, ou complicado de gerir, qualquer ideia de uma loja ‘online’ que funcione com todo o catálogo, pelo gasto em mão de obra que seria necessária para a gerir e atualizar constantemente, numa forma de ilustrar “a gestão de um equilíbrio que nem sempre é muito óbvio” para quem é de fora do meio.

A faturar “com quebras superiores a 50%”, a morosidade já identificada em vender por envio, seja por contacto via ‘e-mail’, que “possibilita algum diálogo”, ou através da loja virtual, acaba por fazer com que o trabalho despendido não renda nem perto do que a venda ao balcão traria.

Em Coimbra, também a Dr. Kartoon admite que a situação tem sido “complicada”, não só pelo fecho de portas como pela complexa gestão de ‘stock’ de uma loja ‘online’, com as encomendas por ‘e-mail’ como método privilegiado para o negócio virtual nesta casa.

Para João Miguel Lameiras, o livro devia ser, “como em França, considerado um bem essencial”, para as livrarias seguirem abertas. O livreiro pede “sensibilidade” ao Governo e uma decisão do Presidente da República que permita a reabertura.

Lembrando que as pequenas editoras “não entram nos supermercados” e, poucas, em lojas como a Fnac, outro problema decorrente dos confinamentos para a BD é “não se realizarem os festivais”.

“Era um sítio onde se faziam bastante vendas e se chegava a um público mais alargado. No Amadora BD, fazíamos o equivalente a três ou quatro meses de faturação”, aponta.

Também em Coimbra se coloca a esperança na reabertura e “na vontade de as pessoas voltarem à livraria”, porque “muitos clientes não gostam de comprar ‘online'”, à semelhança do que aconteceu em 2020.

Para Mário Freitas, “se fosse para vender só ‘online’, tinha apostado num armazém”. Neste contexto, Paulo Costa também lembra as despesas relacionadas com a manutenção de uma loja na zona do Chiado.

O responsável pela Kingpin Books volta ao que chama um “verdadeiro insulto”, com a abertura da venda aos livros em grandes superfícies, hipermercados, papelarias, lojas dos CTT e outros espaços similares, permitida após o decreto presidencial de estado de emergência e a regulamentação do confinamento, pelo Governo.

Critica também a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) por se “calar e deixar de protestar” quando apenas as pequenas livrarias são afetadas, que “são quem se ‘lixa'”.

Apesar do “desabafo catártico”, não quer soar derrotista nem pintar o setor como “coitadinho”.

“Posso estar num momento particularmente amargo, por uma certa revolta, mas tal como jamais baixei os braços há um ano, jamais o faço agora, e acredito que, a partir do momento em que as coisas reabram, possam reabrir com máxima de força, e que as pessoas [regressem] com vontade de voltar a pegar nos livros”, remata.

A esperança de que as livrarias possam ser dos primeiros negócios a reabrir portas, ou pelo menos a venda ao postigo, une os quatro projetos dedicados à nona arte, até pela ameaça, destaca Vasco Carmo, de subsistência de muitos do setor.

“[A diferença de tratamento] é um prego no caixão das livrarias. É ter uma defesa, em apoio comercial, às grandes superfícies e grandes grupos, em detrimento das mais pequenas, que não deixam de ser a espinha dorsal da economia”, critica.