Os critérios estabelecidos pelos especialistas para desconfinar são mais apertados do que os do Governo, que levaram a avançar para uma abertura gradual de portas já a partir da próxima segunda-feira. Para os autores do estudo “Linhas Vermelhas – Epidemia de infeção por SARS-CoV-2”, para se aliviar medidas é preciso um conjunto de critérios que inclui o número de doentes internados em unidades de cuidados intensivos, a taxa de incidência de casos por 100 mil habitantes e o Rt.

O documento em causa é assinado por peritos da Direção-Geral da Saúde (DGS), Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva, alguns deles presentes nas habituais reuniões do Infarmed.

Vamos a números. No passado dia 1 de março, quando Portugal apresentava 105 novos casos de Covid-19 por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias, já António Costa apresentava o plano de desconfinamento para começar na segunda-feira seguinte, três dias depois. Para os especialistas o alívio deveria só acontecer quando a taxa de incidência fosse “inferior a 60 casos por 100 mil habitantes” ou “em alternativa” se “a taxa de incidência se encontrar entre 60 e 120 casos por 100 mil apresentando um valor de Rt inferior a 0,8“. As medidas do Executivo foram tomadas quando, segundo o primeiro-ministro o Rt estava em 0,78, mas um dia depois o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) anunciou o aumento para 0,8, um valor que já coloca em causa a alternativa apresentada pelos especialistas.

Há ainda um outro critério que não é cumprido: o internamento em unidades de cuidados intensivos. Esse número tem vindo a descer nos últimos dias e está hoje em 253. Ainda assim, é um número superior aos 245 que foi estabelecido no estudo em causa.

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Por outro lado, o Governo é muito mais rígido do que os especialistas quando é para voltar atrás e apertar medidas. No quadro apresentado por António Costa — onde havia uma zona verde, duas intermédias em tons de laranja amarelado e uma vermelha — o Governo impôs a meta dos 120 casos por 100 mil habitantes para recuar nas medidas sempre que se passe esse limite. Já no documento apresentado pelos especialistas, a linha vermelha acontece aos 240 casos por 100 mil habitantes.

Neste quadro, os especialistas explicam que há uma ligação entre “o tempo calculado para, com determinada taxa de crescimento (Rt) e incidência, atingir-se a linha vermelha de incidência a 14 dias igual ou superior a 240 casos por 100 mil habitantes”.

O estudo publicado este sábado foi realizado por peritos da Direção-Geral da Saúde (DGS), Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19.

No documento foi feita uma análise às abordagens de vários países durante a pandemia, em que houve opções diferentes para diversos momentos. Os especialistas elegeram ainda a testagem, o rastreamento, as variantes do vírus e os cuidados intensivos — com foco na necessidade de manter camas para os doentes não-Covid — disponíveis, com o intuito de serem apenas usadas as que foram criadas após março de 2020.

O estudo pode ser consultado aqui.

Diferença entre Governo e especialistas é um “valor de fronteira”

Óscar Felgueiras, um dos autores do estudo e matemático da Universidade do Porto, olha para o Rt como o “primeiro indicador de atuação” por ser um “indicador de crescimento”. “Para voltarmos a atingir os 12o casos por 100 mil habitantes primeiro temos de crescer e para crescer é preciso o Rt estar acima de 1. O primeiro indicador que vamos ter de uma inversão de situação é o Rt, quando passar acima de 1 temos de monitorizar a situação e perceber se é preciso agir”, explica.

No caso de o Rt estar acima de 1 e o número de casos por mil habitantes em 120 é preciso “haver retrocessos”. Porém, Óscar Felgueiras esclarece que perante uma taxa incidência alta, o Rt acima de 1 “é muito preocupante”, mas perante uma incidência muito baixa “até pode não ser”. É nestes casos que entra a “avaliação qualitativa”. Há uma “zona intermédia” que o especialista considera “muito importante” e que é aí que se “vai ter de atuar”.

O especialista acredita que o que foi apresentado pelo primeiro-ministro é uma “simplificação” do que foi apresentado como sugestão dos peritos, com uma comunicação mais “simples e clara”.

“O que se pretende é incidência baixa e Rt abaixo de 1, esses são claramente os objetivos”, aponta, ao explicar que os 120 casos por 100 mil habitantes são o “nível de referência”, “não como objetivo, mas como nível de transição entre aplicação ou não de medidas”.

Óscar Felgueiras compara o estudo com o plano do Governo — que foi apresentado antes dos números dos peritos terem sido atingidos — e diz que estão em causa “valores de fronteira”. “Não me parece que fosse absolutamente incompatível a visão de que estamos em condições de começar com algum alívio de medidas”, realça, através da justificação de que é praticamente cumprido o critério dos especialistas que aponta para uma taxa de incidência entre os 60 e os 120 casos por 100 mil habitantes” e o Rt nos 0,8, sendo este o último valor conhecido.

Como meta os especialistas continuam a apontar os 60 casos por 100 mil habitantes, mas Óscar Felgueiras deixa claro que com o desconfinamento vai haver um aumento de transmissibilidade, o que deve obrigar a uma monitorização constante.

Também o indicador dos cuidados intensivos — em que os peritos apontaram para 245 internados — deve ser conseguido em breve, tendo em conta que estamos perante uma “incidência baixa, uma descida de casos” e espera-se uma “descida de doentes em cuidados intensivos”.

Relativamente ao valor crítico apontado por Costa, o especialista não tem dúvidas que se trata dos 240 e lembra até a apresentação do Governo em que era apresentado como limite a evitar. Já os 120 casos por 100 mil habitantes são uma “linha intermédia” que deve servir de “referência” na implementação de medidas, em que “começa a haver uma atuação anterior à chegada aos 12o e a partir dos 120 começa a haver mesmo regressão de medidas”.