Depois de uma década de violência incrível e uma tragédia humana que fez da guerra na Síria o conflito mais marcante do início deste século, os combates diminuíram de intensidade, mas a paz continua distante.
Quase 390.000 mortos, metade da população do país de 22 milhões de habitantes obrigada a fugir — o maior deslocamento causado por um conflito desde a Segunda Guerra Mundial -, cidades transformadas em campos de ruínas, e a situação na Síria continua a ser um “pesadelo vivo”, nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres.
As manifestações estavam proibidas há meio século na Síria quando chegaram ao país os ecos do movimento de revolta conhecido como a Primavera Árabe, que abalou ditaduras árabes no poder há décadas.
Desencadeados em 2010 na Tunísia, os levantamentos alargaram-se ao Egito e à Líbia e as primeiras concentrações na Síria, limitadas, tinham como objetivo declarado apoiar o que se passava nos outros países.
“Apelávamos à liberdade e democracia na Tunísia, no Egito e na Líbia, mas os nossos ‘slogans’ eram (na verdade) pela Síria”, conta o militante Mazen Darwiche, 47 anos, numa entrevista por telefone à agência France-Presse.
Um grupo de jovens de Deraa (no sul da Síria) foi mais direto e escreveu na parede da escola: “Chegou a tua vez doutor”, numa referência à formação em oftalmologia do Presidente Bashar al-Assad.
Os jovens foram detidos e torturados, o que provoca indignação e dá origem às primeiras grandes manifestações. A 15 de março de 2011, realizam-se concentrações em todo o país e a data fica como a do início dos protestos cuja repressão levaria à guerra.
Dez anos mais tarde, Al-Assad, 55 anos, não teve o destino do tunisino Zine el-Abidine Ben Ali, forçado ao exílio, nem do egípcio Hosni Mubarak, afastado do poder, como desejariam os jovens de Deraa.
Al-Assad continua no poder, mas à frente de um país em ruínas, com soberania limitada sobre um território desmembrado por potências estrangeiras, sem perspetiva imediata de reconstrução ou reconciliação.
É Darwiche que fala do exílio, em Paris, sobre a ferocidade da repressão.
“Não pensei que ele chegaria a tal nível de violência”, reconhece o ativista, detido em 2012, preso durante mais de três anos e torturado. “Mas estava errado”, adianta.
Desprezando a condenação internacional, o regime recorreu a armas químicas, lançou barris de explosivos em bairros residenciais e usou táticas medievais de cercos contra redutos rebeldes.
Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, cerca de 100.000 presos morreram sob tortura nas prisões do regime, outras 100.000 pessoas continuam detidas e cerca de 200.000 estão desaparecidas.
Os bombardeamentos aéreos das forças pró-governamentais não pouparam hospitais nem escolas. A cidade velha e os mercados históricos de Alepo, classificados como património mundial, foram arrasados.
O caos permitiu a expansão meteórica de uma das organizações mais sangrentas da história do terrorismo moderno, o grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico (EI), que em 2014 proclama um “califado” no território conquistado na Síria e no Iraque.
A violência inédita do EI e a sua capacidade de atrair combatentes da Europa incute o medo nos ocidentais. Troca-se o entusiasmo cauteloso pela revolta síria no início pela luta contra os ‘jihadistas’, à custa dos rebeldes que lutam contra as forças de Al-Assad.
Para defender os seus interesses, Washington e Teerão enviam militares para a Síria, tal como a Turquia e a Rússia, que em 2015 lança a operação militar mais ambiciosa desde a queda da União Soviética, para restabelecer um regime sob grande pressão.
“Éramos muito ingénuos quando começamos a revolução”, admite Darwiche, um dos fundadores dos comités de coordenação criados para manter a revolta, e acresça: “Pensávamos que bastava ter razão”, enquanto o regime e os extremistas tinham “verdadeiros parceiros e enormes recursos”.
No início os adversários do regime abalaram o exército de Al-Assad enfraquecido por deserções em massa, primeiro os rebeldes — civis que pegaram em armas e desertores -, depois os grupos islamitas, antes da chegada dos ‘jihadistas’.
O governo chegou a controlar apenas um quinto do território e a ter os rebeldes às portas de Damasco, mas a intervenção do Irão e do movimento xiita libanês Hezbollah e sobretudo dos militares russos ao lado do regime vai alterar a situação.
Com o apoio crucial da aviação russa, cerco após cerco, cidades e bastiões de insurgentes acabam por cair e os rebeldes são forçados a aceitar acordos de rendição.
Atualmente o regime controla cerca de dois terços do território, incluindo as principais cidades e a província de Idlib (noroeste), para onde foram transferidos rebeldes e ‘jihadistas’ após as derrotas noutros locais, é o último grande bastião dos que se opõem a Assad.
Perto de três milhões de pessoas vivem na sua maioria sob controlo dos ‘jihadistas’ do Hayat Tahrir al-Sham, ex-ramo sírio da Al-Qaida, e desde março de 2019 que está em vigor em Idlib uma trégua globalmente respeitada.
Enfraquecida por lutas internas e pelas derrotas militares no terreno, a oposição política no exílio não conseguiu em 10 anos de guerra construir pontes sólidas com os grupos no interior e unificar as suas fileiras para apresentar uma alternativa credível ao regime de Al-Assad.
As negociações entre a oposição e o regime sob a égide da ONU resumem-se atualmente aos trabalhos de uma comissão constitucional, que parece condenada a um impasse.
“No início da revolução, sonhávamos com uma Síria que não fosse governada por um regime ditatorial (…). As conquistas da oposição não correspondem às nossas expectativas. Perdemos dez anos das nossas vidas, o país está destruído e o regime é ainda mais repressivo e criminoso”, diz Khaled Okacha, que está refugido em Idlib.
Os combates diminuíram significativamente e o número de mortos em 2020 foi o mais baixo desde o início da guerra, mas a economia está devastada.
O custo económico de 10 anos de guerra foi avaliado em 1.200 mil milhões de dólares (1.008 mil milhões de euros) num relatório recente da organização não-governamental World Vision e, segundo a ONU, 60% da população vive numa situação de insegurança alimentar.
“As nossas feridas continuam vivas (…) A guerra pode ter acabado, mas o sofrimento não”, declara à AFP o tradutor Hossam, 39 anos, que vive em Damasco.