Um Bloco de Esquerda ao ataque, sobretudo no caso EDP; um PCP menos hostil, a prometer fiscalizar o Governo “a par e passo”; e um primeiro-ministro a pedir que não se esqueçam as “excelentes memórias” partilhadas em conjunto. Foi assim, por entre recordações da geringonça, que se desenrolou o debate bimestral (o formato que veio substituir os debates quinzenais no Parlamento) desta quarta-feira: com António Costa a pedir a Catarina Martins que “não se afaste” desses tempos de “boa memória, mas a lembrar que as memórias do último ano — e do último Orçamento do Estado — também foram “boas”. E essas foram partilhadas com o PCP.

O momento nostálgico do primeiro-ministro chegou quando tinha passado o pico de tensão por causa da EDP (mas já lá vamos) e se aproximava mais um braço de ferro com o BE, neste caso um desentendimento que se vem arrastando sobre o número de médicos que trabalham no SNS (e que é sempre maior em janeiro, altura em que os estudantes de Medicina entram no sistema). Foi por isso que António Costa recomendou a Catarina Martins que fizesse as comparações “de janeiro a janeiro”. E, se em janeiro passado os partidos ainda viviam numa espécie de geringonça informal e em janeiro deste ano já o Bloco tinha pela primeira vez votado contra um Orçamento deste Governo, o primeiro-ministro fez questão de acrescentar, dirigindo-se à coordenadora do Bloco: “Os quatro anos foram de boa memória, mas partilhe também a boa memória do ano passado e não se afaste dela porque não iríamos para bom caminho”.

Não seria o único recado direto do PS para a esquerda no geral e o BE em particular — nem a única resposta a revelar o estado das relações à esquerda. Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, pegou precisamente no tema da Saúde, minutos depois, para lançar um ataque mais subtil ao BE quando falava do impacto desta crise sobre os mais desfavorecidos: “O Estado não lhes falhou e o Estado social forte respondeu. Acho absolutamente notável não ter ouvido, ao longo de uma hora e meia, da parte de ninguém que reclamou mais e mais investimento do SNS uma saudação ao investimento no SNS”. O investimento no SNS não só tinha sido a grande bandeira do BE no Orçamento para 2020 como foi depois o principal motivo apresentado pelo partido para votar contra o Orçamento seguinte, a par de falhas nos apoios sociais.

Ora se o Bloco não fez nenhuma saudação (“Estamos em pandemia, sabemos que há apoios. Mau era…”, ironizou Catarina Martins), a perspetiva do PCP foi diferente, até porque havia conquistas a sublinhar. Foi o que fez João Oliveira, líder parlamentar dos comunistas, quando frisou o reforço dos cuidados de Saúde primários, proposto pelo PCP no último Orçamento, ou o pagamento do subsídio de risco a profissionais de Saúde, que o Governo veio assegurar esta quarta-feira que já foi autorizado, depois de uma notícia do Público sobre as falhas na execução desse apoio.

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O PCP tinha, por isso, motivos para se congratular com algumas medidas e prometer acompanhar a execução de outras “a par e passo”, como disse João Oliveira. Insistiu sobre a regulação do trabalho, com o Governo a lembrar que medidas sobre teletrabalho serão incluídas no Livro Verde que está a preparar. E criticou o facto de a compra de vacinas estar restringida aos contratos feitos no plano da União Europeia, com Costa a recusar comprar as que não forem autorizadas pela Agência Europeia do Medicamento.

A “criatividade” da EDP e a “perplexidade” de Costa

O maior confronto surgiria mesmo com o Bloco (e não só), que começou o debate a puxar pelo caso da EDP: o partido tem denunciado o esquema que, envolvendo aquilo que diz ser uma empresa “fantoche” com apenas um funcionário, terá permitido à empresa fugir ao pagamento de 110 milhões de euros em imposto de selo na venda de seis barragens. “Planeamento fiscal agressivo” que teve como resposta uma “inação chocante”, sentenciou o Bloco; “construção criativa”, admitiu Costa; e Rio acabou a comparar os membros do Governo, e em especial o ministro do Ambiente, a “autênticos advogados da EDP”.

O primeiro-ministro chegou a dizer, nesta que foi a pasta quente que marcou o debate (e que voltou várias vezes a ser assunto ao longo das quase quatro horas por que este se prolongou), que só num “Estado totalitário” é que o Governo daria ordens à Autoridade Tributária sobre os casos que deveria fiscalizar e que o Executivo não teve qualquer responsabilidade na parte da alegada fuga ao fisco. Mas acabou mesmo por admitir que um caso de “simulação fiscal”, a existir, seria “inaceitável”. E até que ficaria “perplexo” se a Autoridade Tributária não estivesse já a investigar o caso e se a diretora do serviço não tivesse dito já aos funcionários: “Vejam lá o que se passa com este negócio”. Para bom entendedor…

O aeroporto que volta a ‘sobrevoar’ o Governo

O que em tempos parecia uma decisão fechada voltou a ser tema. Com o travão no aeroporto do Montijo, o Governo lançou estudos comparativos para três opções — Alcochete, Portela + Montijo ou Montijo + Portela — e o avião aterrou esta tarde no debate bimensal. Tempo para António Costa dizer que a solução do Montijo pode ser “mesmo a única possível para o país alguma vez ter aeroporto”, tendo em conta a privatização da ANA.

O primeiro-ministro lembrou que Portugal está “há 60 anos a discutir o aeroporto”, com avanços e recuos de vários governos sobre as localizações possíveis e sem nenhuma decisão final. Costa recordou que não cumpriu a “tradição”, o que permitiu que se chegasse até esta fase: “Não revi a decisão do Governo anterior e manteve-se a decisão porque acabou o tempo da discussão e é tempo de cumprir.” E se chegou até aqui, nada parece impedir o Governo de avançar. É tempo de decidir. “As soluções que são trabalháveis são as três que colocámos na avaliação ambiental estratégica e pronto. E já assim, como infelizmente tenho dito, é mais uma perda de tempo para uma solução porque mesmo quando tivemos a atitude responsável de não pôr em causa o que o anterior Governo já tinha decidido, ainda assim foi possível encontrar uma forma absurda de bloquear uma decisão que é a boa decisão, a melhor decisão e eu diria, depois da forma como foi feita a privatização da ANA, mesmo a única possível para o país alguma vez ter aeroporto”, alertou.

O chefe do Executivo excluía, assim, a hipótese colocada em cima da mesa por André Silva, do PAN, de apontar as atenções para Beja, dizendo que é preciso encontrar “uma solução efetiva, praticável e que permita recuperar décadas de tempo perdido” e a opção do Alentejo “não faz sentido”. Beja não tem hipóteses de entrar “na equação” e Costa deixa-o claro. André Silva ainda respondeu com exemplos de países em que os aeroportos eram mais longe (deu como exemplo Frankfurt) do que Lisboa-Beja, mas para o primeiro-ministro é um tema fechado — apesar de estar longe dessa fase.

Ainda sobre o aeroporto, mas desta vez relativamente à mudança de lei que evita que as autarquias travem obras importantes para o país, o PEV criticou o “chico-espertismo” do Governo. “Faz lembrar o cidadão que quer estacionar o carro num sítio onde é proibido e resolve o problema: arranca o sinal de trânsito, guarda-o na bagageira e estaciona confortavelmente”, atirou José Luís Ferreira, ao deixar o alerta para “um precedente gravíssimo num Estado de direito democrático” para “passar por cima” dos pareceres quando “não agradam”.

António Costa não entendeu o posicionamento do PEV e questionou o que aconteceria se, nestes e noutros assuntos, os municípios tivessem uma hipótese de vetar este tipo de obras. “Não pode ser um município a condicionar o Estado relativamente a isso”, realça, acrescentando que é preciso “alterar a lei” na Assembleia da República. Costa disse mesmo que houve uma má interpretação da lei e vai ainda mais longe: “Se a AR entender que os municípios podem ter poder de veto, arriscamo-nos a não ter aeroporto.”

“Não gostava de estar no seu lugar.” António Costa contou que tem ouvido muito esta frase nos últimos tempos, quer de políticos, quer de cidadãos. E um debate bimensal em tempos de pandemia não podia não ter o tema pandemia. Primeiro, os factos e a farpa ao Bloco de Esquerda. A “comparação séria e sustentada” do número de profissionais de saúde fazem-se de janeiro a janeiro e verifica-se que há “muito mais profissionais de saúde do que temos o ano passado”, disse, para contradizer o que muitas vezes foi dito pelo Bloco ao longo dos últimos meses.

A vacinação nas escolas que só atrasa uma semana

Era também hora de esclarecer que o Governo suspendeu a vacina da AstraZeneca pelas “dúvidas suscitadas” e porque era fundamental “a confiança dos cidadãos”. Contudo, logo que as autoridades internacionais o fizerem — a OMS já veio sugerir a continuidade do uso da vacina — é para dar seguimento à vacinação, a começar pelas escolas. “Estava prevista a vacinação do pessoal docente e não-docente neste fim-de-semana e vamos ter de adiar uma semana para que isso aconteça”, anunciou o primeiro-ministro, ao dar conta, pela primeira vez, que já havia data para a megaoperação que envolve 80 mil pessoas. O primeiro-ministro deu ainda outra boa novidade: “Já temos [vacinados] a 100% os doentes hemodialisados e temos muitos dos setores fundamentais da sociedade vacinados.”

Quanto ao futuro, o Governo prometeu continuar a reforçar o SNS — algo que, segundo a ministra da Saúde “não é de agora” —, com mais profissionais de saúde e meios, bem como através da “estabilidade dos vínculos de trabalho”. Os rastreios, a vacinação e os autotestes fazem parte da fórmula traçada pelo Governo. “Ontem [quarta-feira] foram realizados mais testes rápidos de antigénio do que na véspera de Natal, pela primeira vez no nosso país, o que significa que está a haver um efetivo aproveitamento daquilo que muitas vezes nos foi sugerido como o mercado de testagem, como as várias potencialidades que existem e testes mais baratos também, porque a realidade que hoje temos não é a mesma que tínhamos há um ano”, avançou Marta Temido.

A governante revelou ainda que está a ser trabalhado “um modelo que permita que também que esses indicadores —  a taxa de positividade, o número de internamentos em cuidados intensivos e enfermaria, os inquéritos epidemiológicos e os resultados dos testes libertados pelos laboratórios privados — sejam publicitados de forma a que toda a população tenha conhecimento dos mesmos”, vincou. Temido garantiu ainda que o investimento no aspeto da comunicação e das ciências comportamentais continua a ter a atenção e investimento do Governo.