Devia a EDP ter pago imposto de selo sobre a venda de seis barragens no Douro? A polémica continua na agenda política. Um dia depois da ida do presidente executivo da EDP ao Parlamento, na mesma casa, António Costa foi confrontado com as suspeitas de planeamento fiscal abusivo nesta operação de 2,2 mil milhões de euros e com o que o Governo poderia ter feito para o impedir, ou pode ainda fazer.
O primeiro-ministro deu como certa uma inspeção da Autoridade Tributária (AT) à operação – que classificou no mínimo como “criativa”, em contraste com a tese defendida por Miguel Stilwell de Andrade, para quem esta venda, feita por cisão de ativos numa nova empresa, foi “uma operação perfeitamente normal, tal como se faz em muitas outras transações em Portugal”. Para dar força aos argumentos da EDP, o gestor até citou um entendimento da Autoridade Tributária em como não haveria lugar ao pagamento de imposto do Selo em operações como estas, que neste caso ascenderia a 110 milhões de euros.
O entendimento mencionado não se refere à venda das barragens da EDP ao grupo Engie, que não foi previamente notificada ao fisco, mas sim à transmissão de ativos de uma concessão (também de barragens) realizada por outra elétrica em Portugal – a Iberdrola, segundo apurou o Observador – que pediu ao Fisco um pedido de informação vinculativo em 2019.
A Autoridade Tributária concluiu que esta transferência de ativos concessionados não se encontrava sujeita ao imposto de selo, em linha com a tese da EDP, invocando as diretivas comunitárias que protegem empresas em reestruturação, citadas aliás pelo gestor da elétrica. O parecer da AT e as diretivas comunitárias são referidas num documento que a elétrica enviou aos deputados a propósito da transação.
No entanto, esta posição da AT vale apenas para a operação avaliada em 2019 e não condiciona o entendimento que o Fisco virá a ter, na sequência de uma mais que certa inspeção à EDP devido a este caso. Até porque no passado já houve pareceres do Fisco em sentido contrário, nomeadamente em 2018.
O parecer de 2019 foi pedido por uma subsidiária da empresa espanhola, que pretendia realizar uma cisão da sucursal que celebrou um contrato de concessão com o Estado português para a construção e exploração de aproveitamento hidroelétricos. O objetivo era transferir os ativos e passivos para uma outra sociedade detida pelo mesmo grupo. O documento não identifica o grupo, mas a descrição assenta como uma luva na Iberdrola, elétrica que está a construir o complexo hídrico com três barragens no Alta Tâmega.
A operação parece em tudo comparável com a realizada pela EDP para destacar as seis barragens que vendeu aos franceses da Engie. Mas há uma diferença: a transmissão realizada pela elétrica espanhola é feita entre empresas detidas pelo mesmo grupo — o que parece facilitar o argumento da reestruturação empresarial — enquanto que a operação da EDP corresponde à venda dos ativos destacados numa empresa veículo a uma entidade terceira e independente.
Não é claro se esta diferença terá impacto no entendimento que o Fisco vai fazer sobre a transação da EDP em sede inspeção. Neste cenário, e para ver confirmada a isenção fiscal, a elétrica terá de ter argumentos para fundamentar que a operação foi uma reestruturação empresarial. Se não o fizer, arrisca-se à aplicação da cláusula anti-abuso fiscal.
No caso de 2019, que terá sido o invocado pelo presidente da EDP, a empresa que controla a sucursal quer levar a cabo uma operação de cisão, mediante o destaque do conjunto de ativos e passivos da concessão que estão alocados à sucursal para a sua fusão, por incorporação, na esfera de outra empresa. Reconhecendo que trespasses de concessões estão obrigados a pagar imposto de selo de 5% sobre o valor da venda, a requerente defende que esta operação não deve estar sujeita a esse imposto, porque sendo uma operação de cisão-fusão não constitui uma transferência onerosa.
O parecer do Fisco começa por contrariar o direito à isenção, considerando que a operação é onerosa porque há uma contraprestação, ainda que não monetária (como no caso da EDP) e que cisão-fusão projetada transferirá de forma definitiva a sucursal para a esfera patrimonial da requerente. Sendo uma transferência onerosa devia estar sujeita ao imposto de selo, argumenta o parecer.
Mas no final, a Autoridade Tributária acaba por concluir no sentido contrário por causa do argumento das operações de reestruturação e do tratamento fiscal que devem ter de acordo com diretivas comunitárias que são citadas. “Os Estados-membros não devem sujeitar as sociedades de capitais a qualquer forma de imposto direto sobre (…). As operações de reestruturação referidas no artigo 4” (da diretiva de 13 de maio de 2013).
O parecer conclui ainda que esta diretiva, sem referir a versão transposta para a lei portuguesa (e que estará no estatuto dos benefícios fiscais) “veda a cobrança de impostos indiretos (como o Selo) sobre operações de reestruturação empresarial. E acrescenta que a “cisão-fusão projetada, pela qual, em conjunto com outros elementos patrimoniais, se transferirá a título definitivo e onerosos para a requerente a concessão, configura para efeitos da alínea a) da aludida diretiva, uma operação de reestruturação. Conclui-se, numa interpretação conforme a diretiva, que a transferência onerosa da concessão operada pela cisão-fusão projetada, não se encontra sujeita ao imposto de Selo”.
Já num parecer emitido em 2018, a Autoridade Tributária recusou a pretensão de isenção do pagamento do imposto de selo, ao abrigo do estatuto dos benefícios fiscais, em que foi invocado também o argumento da reestruturação. A operação em causa envolvia igualmente concessões públicas e configurava uma entrada de ativos por aumento de capital através do qual uma sociedade passava a ser acionista. Neste caso, o Fisco considerou que nem todas as operações societárias, como aumento de capital, estavam abrangidas pela isenção do pagamento de imposto do Selo.
Autoridade Tributária não comenta caso concreto, mas…
Questionado pelo Observador sobre o caso e as decalarações do primeiro-ministro, o ministério das Finanças remeteu uma resposta da Autoridade Tributária com algumas semanas, mas que – disse fonte oficial – “se mantém atual ao dia de hoje”.
De acordo com a AT, Em relação à tributação do trespasse de concessões do Estado, o Código do Imposto do Selo prevê o pagamento de uma taxa de 5% sobre o seu valor. Salienta-se ainda que não tem havido alterações legislativas neste domínio, mantendo-se aquele quadro legal em vigor há vários anos. Acresce ainda que
A Autoridade Tributária e Aduaneira diz, nesta resposta, que “não tem registo da concessão de qualquer isenção nos últimos anos neste domínio”. Mas o caso da Iberdrola não é bem uma isenção, é o reconhecimento de que a empresa naquele negócio não está sujeita ao imposto de selo.
Mas a AT também salienta que “ao abrigo do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, podem verificar-se situações de reestruturação empresarial que operem a alteração da titularidade de concessões do Estado e que não estejam sujeitas a Imposto do Selo”. Ou seja, abre espaço para situações, pelo menos, como a da Iberdrola.
No entanto, ressalva que quaisquer operações neste domínio “serão objeto de um rigoroso acompanhamento inspetivo, no âmbito do qual a Autoridade Tributária e Aduaneira reserva os exercício dos seus poderes legais contra eventuais construções jurídicas abusivas com a finalidade principal de obter uma vantagem fiscal que frustre a finalidade das normas fiscais”.