Dois dias depois de ser condecorado pelo Presidente da República, Abel Ferreira regressou a Braga para recordar o seu percurso no mundo do futebol, o atual momento ao leme do Palmeiras — onde conquistou a Taça Libertadores e a Taça do Brasil — e para comentar o futebol português. O local para a conversa com os meios de comunicação foi escolhido a dedo: um stand de automóveis, em homenagem a uma das grandes paixões do treinador português. Na mesa em frente onde se sentou estavam pousadas duas camisolas do clube brasileiro que treina desde outubro de 2020 e a medalha de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. As medalhas das duas conquistas, revela, ficaram em casa, no Brasil, “porque atraem mais [sorte]”.

Abel Ferreira não esconde o “orgulho imenso de ser português” e confessa o que pensou na altura em que Marcelo Rebelo de Sousa lhe colocou a medalha de comendador ao peito. “Estava ali a representar cada uma das pessoas que me ajudaram a receber esta condecoração. Não sei se sou merecedor de a receber sozinho, porque muitas pessoas contribuíram para que estes feitos fossem possíveis, desde diretores, jogadores, departamento de futebol, a minha equipa técnica, os jogadores”, explica aos jornalistas.

Vencer uma Taça Libertadores, acrescenta, é equivalente a uma Liga dos Campeões, mas com uma diferença: “A Champions tem o hino que dá um arrepio e a pele de galinha aparece quando se ouve. Quando olhamos para a Libertadores há o slogan que é muito claro: ‘Em busca da glória eterna’. São duas competições com um impacto e dimensão muito grandes”.

A conversa recuou, no entanto, ao início da carreira como treinador, algo que até ao contacto com Jesualdo Ferreira, no Sporting de Braga, não estava nos planos de Abel Ferreira. “Ele [Jesualdo] fazia muitas perguntas aos jogadores durante a palestra. Houve dois treinadores que me puseram a dar palestra: um foi o Jesualdo Ferreira e o outro Paulo Bento. Eles falavam e no final eu ia dar as últimas palavras”, recorda. Foi a partir desse momento que a vontade em ser treinador começou a surgir. Na lista de referências na sua carreira, destaca José Mourinho, mas também Bobby Robson, Jürgen Klopp e Pepe Guardiola.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Comecei a apontar tudo. Tenho, inclusive, um gravador em casa em que começava a ditar as coisas que via. ‘Hoje houve porrada no treino, como é que o treinador fez? Fez isto, isto e isto’. ‘Hoje fizemos um treino espetacular, qual foi?’. E ia apontando também nos livros. Foi assim que cresci. E também outras vezes a ver decisões de comportamentos de jogadores no treino e eu a pensar: ‘Se algum dia for treinador não vou fazer isto ou vou fazer isto'”, recorda Abel Ferreira aos jornalistas.

Abel Ferreira não esquece também o primeiro momento como treinador na equipa de juniores do Sporting. “A minha cruzada como treinador começou no primeiro treino, quando mandei um jogador ao banho mais cedo, o Gael Etock, que faltou ao respeito. Pouco tempo depois, o Illori e o Edgar Ié, que eram titulares, começaram à porrada. Pegaram-se pela competitividade do treino. Um pediu desculpa em frente ao grupo, o outro não. Pensei no que ia fazer. Eles jogam porque são os melhores ou deixo-os de fora e jogam outros dois e perco qualidade na equipa? Foi das maiores decisões que tive de tomar e deixei os dois de fora. Um não jogou mais porque não pediu desculpa e outro jogou depois”, recorda.

Um bom treinador, reforça, é “aquele que consegue ensinar o jogador a ler o jogo”, algo que o técnico diz só ter conseguido fazer por volta dos 26 anos. No entanto, revela, há algo que também aprendeu: aceitar a imprevisibilidade. “Muitas vezes fazemos um estudo exaustivo do adversário, somos metódicos no treino e depois estás no último segundo da Libertadores quando o teu extremo esquerdo se lembra de ir para o lado direito e o extremo direito se lembra de ir para a área, há um cruzamento e há um golo que decide uma Libertadores”, explica, acrescentando que os treinadores querem tornar o futebol “o menos aleatório possível”, mas isso só acontece “sabendo que o jogo e os jogadores têm sempre vida própria”.

O “dia perfeito” no Braga, um Sporting que “tem tudo” para ser campeão e o “trabalho extraordinário” do FC Porto

Nas perguntas colocadas não faltaram as recordações do percurso de Abel Ferreira no futebol português. Sobre o Sporting de Braga, o técnico lembrou um dia que considerou “perfeito”: quando orientou os arsenalistas, em 2016, frente ao Sporting. “Estive três, quatro dias a orientar a equipa. Foram três dias mágicos em que tudo o que planeamos aconteceu. Tudo. Desde o plano, desde o que ia acontecer no jogo, tudo. Muitas pessoas viram-me a rir quando o Wilson Eduardo fez golo e acharam que estava-me a rir por ser contra o Sporting. Mas não foi. Foi porque ele tinha falhado uma grande oportunidade na primeira parte e eu disse para não se preocupar que ainda tinha uma guardada para a segunda parte e isso aconteceu”, recorda o treinador. Nesse jogo, o Braga venceu os leões com um golo de João Mário aos 70 minutos. Foi também no final desse jogo que António Salvador, presidente do Braga, entre abraços disse: “Tu um dia vais ser treinador do Braga”. 

Dos arsenalistas, Abel Ferreira lembra os “anos espetaculares de aprendizagem e crescimento” e deixa elogios à atual equipa, que “tem feito uma campanha extraordinária” com Carlos Carvalhal. “É uma equipa com uma plasticidade e uma variabilidade na sua forma de jogar que gosto particularmente e acho que o Braga está de parabéns por tudo o que tem feito ao longo dos anos”, reforça.

Dos dias menos bons, o treinador recordou o gesto e declarações após a eliminação do Sporting de Braga na meia-final da Taça da Liga, contra o Sporting, em que os bracarenses perderam nas grandes penalidades e deixaram grandes críticas à arbitragem. “Fui muito criticado por isto, senti-me envergonhado quando vi, confesso”, refere, considerando agora que aprendeu que “não adianta semear este tipo de conflito”.

O erro é algo que faz parte. Agora há outra coisa que também faz parte do futebol e essa é que é mágica: a emoção. Quando estamos com essa emoção, com essa adrenalina começamos a bater na mesa, o sangue começa a fervilhar aqui dentro e começas a bater, a bater e se não ganhares e fazes aquela figura que eu fiz. Costumo dizer que a minha vida é um livro aberto, mas tem ali 4 ou 5 páginas que se pudesse rasgar eu rasgava”, confessa Abel Ferreira.

Já sobre o atual momento do Sporting no campeonato português, Abel Ferreira destaca a vantagem de pontos dos leões. “Não me lembro de ver o Sporting com uma vantagem tão grande e tudo fruto do mérito dos seus jogadores e treinadores, fruto do trabalho de toda uma estrutura”, sublinha, lembrando que foi em Alvalade que ganhou os seus primeiros títulos. “Foi um momento muito especial na minha cruzada como treinador e acho que têm tudo para ser campeões e que é bom para o futebol português”, assegura.

Questionado sobre o percurso do FC Porto na Liga dos Campeões, depois de ter vencido a Juventus e ficado apurado para os quartos de final, o atual treinador do Palmeiras revela que esteve a ver o jogo com a sua equipa técnica e que “foi preciso sofrer a bom sofrer”. “O que o Sérgio Conceição tem feito no FC Porto e pelo futebol português é algo notável, histórico. O que ele conseguiu agora frente a uma super equipa, com recursos completamente diferentes, é de enaltecer. Tem feito um trabalho extraordinário e isso é bom para o futebol português, para todos”, reforça.

Por fim, a grande diferença entre o futebol na Europa e o futebol brasileiro, destaca, é densidade competitiva, havendo no Brasil jogos de três em três dias com um dia de descanso. A solução? “Tens duas maneiras de olhar para isto: ou estás sempre a queixar-te ou encaras isto como um desafio. Se olhares para isto como um desafio vais-te tornar muito melhor jogador”, responde. O treinador diz estar “feliz” no emblema brasileiro e revela que não recebeu convites de outros clubes.