“Não há crise”. Ao início da tarde deste sábado, um dos técnicos responsáveis por assegurar que a peça “A Carrinha Velha” não sofria problemas de arranque, tentava tranquilizar os atores Luís Filipe Silva e Joana Magalhães, das Comédias do Minho, projeto cultural itinerante que foi convidado a celebrar o Dia Mundial do Teatro no Palácio de Belém. Num palco improvisado, de frente para os Jardins da Cascata, lugar que costuma servir para a Feira do Livro da Presidência da República, está apenas uma mesa, dois microfones, uns papéis e os tais protagonistas. E uma carrinha velha que ganha corpo por uns minutos parar mostrar que há uma ideia (com resultados práticos) para a cultura fora do centro de Portugal que pode servir de modelo quando o novo coronavírus permitir o regresso pleno do sector. Uma tarde carregada de simbolismo num dia que, mais uma vez, não pôde ser gozado e sentido como se queria.
Do lado do público, apenas treze lugares sentados, que estariam reservados para elementos da equipa do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para a diretora artística da companhia, Magda Henriques e para o presidente da Câmara Municipal de Paredes de Coura, Vítor Paulo Gomes Pereira. A pandemia assim o obriga, já que o sector da cultura, onde se insere o teatro, continua de portas fechadas, não estando contemplado nesta primeira fase de desconfinamento. Aí sim, há uma verdadeira crise, onde milhares de profissionais continuam a viver com grandes dificuldades no meio de um sentimento de esperança que está a desaparecer.
Marcelo Rebelo de Sousa só chegaria por volta das 15h00 com um objetivo simbólico: reforçar a tal esperança de reinventar a cultura depois da pandemia. E mostrar que a Covid-19, que atirou o sector da cultura para um dos seus períodos mais difíceis, pode ser a rampa de lançamento para manter o foco no processo de descentralização no país.
Uma “Carrinha Velha” e uma coluna falante que vieram divertir (e alertar) o Presidente
E é por isso que as Comédias do Minho não são uma escolha ao acaso neste dia. Esta tarde quis-se fugir ao clima de guerra aberta que existe entre a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, e os profissionais do sector, que continuam a reclamar por mais apoios, muitos deles ainda em atraso, segundo as queixas registadas. A mensagem era outra. A de que nem tudo deve estar virado para os grandes centros de Portugal. De que as autarquias se devem envolver para criar mais projetos culturais como este, mas que não basta querer, “nem criar leis”. É preciso dar meios. E que esse processo tem, necessariamente, de estar ligado à cultura.
É que esta companhia anda há 17 anos com um “projeto cultural próprio” — do teatro, passando pela performance artística ou por iniciativas educativas — em cinco municípios do Minho: Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira. Com uma equipa de dez pessoas, esta associação de direito privado, que trabalha com tantos outros colaboradores locais e técnicos municipais, quer, sobretudo, servir de exemplo para o que pode ser uma solução para o pós-pandemia. Resta saber se essa vontade atravessará mais do que uma comemoração, podendo não ter mais eco para além deste ano, onde terá lugar mais umas eleições autárquicas.
Antes dos atores entrarem em cena, Magda Henriques quis relembrar a importância do teatro, “o lugar de onde se vê”, e de todos os seus protagonistas, os visíveis e invisíveis, agradecendo este “gesto de esperança” que atira as periferias para o centro da discussão. “A situação dramática que o sector vive só veio radicalizar o que já estava por aí. Mas apesar de todas as dificuldades, os profissionais continuam a dedicar-se ao teatro”, disse. A “Carrinha Velha” teve de ficar estacionada mais uns minutos, porque estava ainda reservado o visionamento de um vídeo dedicado Isabel Alves Costa, antiga diretora artística da companhia (entre 2007-2009), que morreu há 12 anos.
Chegado o momento, não há cortinas. Os atores estão lá ao fundo, à espera de entrar em cena. Pouco ou nenhum sinal de nervosismo, mesmo que não pisem um palco desde janeiro de 2020. Somos convidados a assistir a uma entrevista, em jeito de teatro radiofónico, que parte do podcast ficcional a “A Tua Mesa Odeia-te”, criado por Tânia Almeida durante o atual confinamento para a plataforma digital “Comédias Takeaway”.
A tal carrinha, Dobló, que percorreu tantos quilómetros na zona raiana do país que chegariam para dar “cinco voltas à Terra”, anda na estrada desde 2006. Nasceu em Itália, foi criada em Lanhelas e envelheceu no Vale do Minho. Transportou atores, areia, animais ou sopa de um lado para o outro na região, serviu de sistema de som para anunciar a “chegada do teatro”e até de poste de iluminação. Só teve um acidente. Foi uma segunda casa para muitos dos que compõe a moldura das Comédias do Minho. Foi veículo de boatos, conversas, despedidas e até de beijos. A companhia queria uma Ford, mas deram-lhe esta Fiat. É ela que levou durante anos o teatro às aldeias Agora vai para abate. Novo simbolismo para dizer que, se assim o quisermos entender, não é pelo facto das regiões mais periféricas do país terem das populações mais velhas, longe do boost cultural de Lisboa e do Porto, que a cultura não pode vingar. Mesmo que seja à boleia de uma “velha carrinha”.
O espetáculo durou 30 minutos. Terminou com o testemunho de uma coluna de som, que “não tem usado a sua voz”, mas que decidiu deixar outra mensagem carregada de simbolismo. O meio onde se insere, “cheio de insegurança”, teve de usar a imaginação — que no caso da cultura tem passando pelo digital — para continuar a comunicar. “A bela cultura do teatro viverá enquanto os humanos contarem histórias”, disse.
Marcelo quer descentralizar para reconstruir a cultura no pós-pandemia
No fim, as máscaras impediram uma reação mais entusiasta da pequena audiência, ainda que o presidente da República tenha, ao longo da peça, passado grande parte do tempo a rir. Ora, a história que Marcelo Rebelo de Sousa quis contar no seu discurso é precisamente essa, em jeito de desafio para posteridade num tom mais sério: mais descentralização, mais meios, resulta em mais cultura, mais escolas e mais economia. “É este o símbolo do nosso encontro. Estamos mais perto do fim [da pandemia]. A cultura pode renascer e tem de ser diferente do que quando começou a pandemia. É preciso reconstruir e não só recuperar. Portugal não é só Lisboa. Há muito a fazer. Temos leis, sim, mas essa descentralização tem de passar para a vida das pessoas”, disse. Deixou ainda a promessa de passar pelo Minho — algo que já tinha feito anteriormente — para conhecer a “velha carrinha”.
Quanto a Joana Magalhães e Luís Filipe Silva, depois de longos minutos a conversar — e a trocar selfies — com o presidente da República, o convite serviu mais do que apenas voltar a pisar um palco, depois de tanto tempo longe das salas de espetáculo. “Fiquei comovido porque está na hora de se tomar como exemplo o modelo das Comédias do Minho. Quando entrei na companhia há 15 anos, disse à Isabel Alves Costa que precisávamos de replicar este conceito pelo país, porque não existia. Se as autarquias tomassem conta, mudava tudo. Pediu-me que tivesse calma”, conta o ator ao Observador, que, graças a este convite, acredita que, afinal, a antiga diretora artística tinha razão. Valeu a a pena a espera. Sabe, no entanto, que é preciso mais investimento municipal e que o Plano de Recuperação e Resiliência, que servirá para combater a crise criada pela Covid-19, contemple o sector da cultura. Até porque quem mora nas periferias, “tem tanto direito de oferta cultural” do que quem vive nos centros de Portugal. Não bastam, portanto, meras promessas ou ambições. É preciso mais ação.
Já Joana Magalhães, que está na companhia há quatro anos, acredita que a pandemia veio reforçar uma relação de proximidade entre as pessoas que é a génese das Comédias do Minho, ainda que tenha destapado a precariedade dos profissionais da cultura. “Não é só ir ao teatro, aqui há uma relação artística que depois cria a comunidade, aproxima as populações”. Ainda assim, confessa que a estrutura da companhia, apesar de todos os projetos que já conseguiu implementar, “é frágil”, mesmo contando com apoios quadrianuais. E deixa uma pergunta: “será que vão ser criadas condições para os profissionais do futuro?”.
Essa é uma das questões que, apesar do dia simbólico, vai continuar por responder. A companhia espera voltar a pisar os palcos no próximo verão já que no início do ano não foi possível estrear uma peça. Querem voltar aos tempos em que o ponto de partida era o Minho, levando depois os espetáculos por tantas outras regiões, de norte a sul, também em co-criação. Que o plano de desconfinamento e os números da Covid-19 assim o permitam. E que a velha carrinha possa ainda fazer mais uns quantos quilómetros. Aí sim, não haverá crise.