Chega às livrarias esta terça-feira. Aos 63 anos, Sharon Stone publicou uma autobiografia, mais de 250 páginas que tanto trazem revelações chocantes sobre a vida da atriz, como continuam a pintar um retrato negro de Hollywood, onde violência e toxicidade são os principais ingredientes. Já anteriomente, Stone tinha soltado algumas pistas sobre o seu passado, do sentimento de ter sido “esquecida” depois do derrame de 2001 à longa polémica em torno do cruzar de pernas mais famoso do cinema, segundo ela, não inteiramente consentido.

Em The Beauty of Living Twice, Sharon Stone começa por ir a fundo na infância e adolescência. “Estranha” é como se define na época em que era uma rapariga em idade escolar. Os abusos entrariam cedo para o léxico da jovem que cresceu na Pensilvânia profunda, sobretudo os que sofreu, juntamente com a irmã, do próprio avô.

Capa do livro The Beauty of Living Twice, editado pela Knopf

Já em adulta, começou por querer ser realizadora, mas essas portas estavam ainda demasiado fechadas para as mulheres. O cinema viria a proporcionar-lhe um rol de episódios de assédio sexual, mas cujos intervenientes — atores, realizadores e produtores — continuam a não ser revelados no livro. Ao mesmo tempo, veio a exposição mediática e a rapariga tímida e desajeitada sentiu-se ainda mais ameaçada pelo reverso do estrelado.

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O derrame que quase a matou

A revelação não é inédita. Em 2019, a atriz falou do AVC que sofreu há precisamente 20 anos, apontando o dedo na altura há insensibilidade da indústria onde trabalha pela falta de oportunidades. No novo livro, expõe a tragédia pessoal que a assolou quando tinha 43 anos. Stone descreve que a artéria vertebral direita rebentou. A probabilidade de sobreviver estava na casa do 1%, mesmo após uma cirurgia que prolongou durante sete horas. Foi a ler a revista People que soube, mais tarde, que os 30 dias seguintes seriam decisivos.

“Sangrei tanto em meu espaço subaracnoide que o meu cérebro foi empurrado para a parte da frente da cara. O lado direito caiu com a pressão. Sinto-me quase como se o meu ADN tivesse mudado. Era uma pessoa com curvas e perdi 18% da minha massa corporal”, relatou em entrevista à The New Yorker.

Mas o momento foi também marcado por uma experiência transcendente. Na cama do hospital, a atriz diz ter saído do próprio e ter visto três amigos, que já tinham morrido, junto à cama. No livro, fala numa “luz brilhante” e nas palavras que o trio lhe dirigiu: para não ter medo.

Uma infância de abusos

O abuso sexual de que foi vítima, assim como a irmã Kelly, três anos mais nova, é uma das revelações mais chocantes do livro. Segundo relata a atriz, ambas foram sexualmente abusadas às mãos do avô materno, situação que se repetiu e prolongou até à morte deste, quando a atriz tinha 14 anos. No funeral, relata ter posto a mão dentro do caixão para se certificar de que o avô estava mesmo morto. “Toquei-lhe e aquela satisfação bizarra de perceber que finalmente estava morto atingiu-me como um bloco de gelo […] estava tudo acabado”.

Os crimes ocorreram sem que a mãe se apercebesse — ao contrário da avó que, além de vítima do marido, também colaborava nas agressões — e a violência dos mesmos fizeram com que a mente de Sharon Stone se transformasse em memórias difusas, aclaradas recentemente em longas sessões de terapia. “O meu avô ameaçava matar-me constantemente”, admitiu ainda, também à The New Yorker.

Sharon Stone em criança © Instagram.com/sharonstone

Mas a atriz partilha outros episódios de um crescimento que terá sido atormentado por predadores sexuais, do rapaz no recreio ao chefe, quando trabalhava no McDonald’s, sem esquecer o professor de Ciências ainda no liceu. Revela ainda ter sofrido um aborto durante a adolescência, fruto de uma educação sexual deficitária (a atriz já tinha revelado no passado ter sofrido três abortos, todos durante o segundo trimestre das gravidezes, antes de decidir adotar o primeiro filho, Roan).

Sharon Stone não cresceu num meio privilegiado. Foi em Meadville que ganhou um concurso de beleza, pouco tempo antes de assinar contrato com a Ford Modeling Agency, em 1977. Teve uma infância ao ar livre e a “andar por aí com os rapazes”, como conta agora na autobiografia. “Era estranha, mas não era de propósito”, refere. “Era muito alta. Tinha voz de rapaz. Ninguém conseguia perceber se era um rapaz ou uma rapariga porque os meus ombros gigantes eram muito maiores do que os de qualquer outra pessoa”, recordou na mesma entrevista.

Stone em Hollywood

Um “desastre social”, resumiu ainda. Por sempre ter sido naturalmente introvertida, define a chegada ao estrelato, com a estreia de “Instinto Fatal”, em 1992, como um “ataque físico” e fala de um tipo de fama que envolveu perseguição e medo. Enquanto isso, os bastidores do cinema eram tóxicos e repletos de violência, do realizador que se recusou a trabalhar com Stone depois desta ter recusado sentar-se no seu colo aos produtores que insistiam para que dormisse com os parceiros de cena para criar química no ecrã.

Sharon Stone.

Sharon Stone em 1985 © Getty Images

Questionada sobre a evolução da indústria num momento pós-Me Too, à The New Yorker, falou sobre um problema bem mais estrutural. “Não acho que seja um problema de Hollywood e é isso que realmente quero transmitir no meu livro. Começa em casa, nos lares ricos e nos pobres. Acontece porque não temos leis capazes nesta área, porque não falamos disto em voz alta e porque culpamos as pessoas, mas não as que o fazem”, admitiu.

Sobre o filme que lhe garantiu fama planetária, e que diz ter sido duro para praticamente todos os intervenientes (até o realizador terá ido parar ao hospital), Stone reitera a versão que há vários anos sustenta sobre a mítica cena do cruzar de pernas da personagem Catherine Tramell. No livro de memórias, conta que um membro da produção lhe pediu para tirar as cuecas — “Não podemos ver nada e o branco está a refletir a luz”. No final, o realizador Paul Verhoeven ter-lhe-á garantido que nada ficaria exposto na cena. A atriz disse mais tarde ter tido uma desagradável surpresa durante o visionamento.