A criação do provedor do animal foi anunciada a 25 de março, mas a pessoa que vai ocupar o lugar foi escolhida, no mínimo, sete meses antes, sem grande esforço para esconder a falta de coerência no processo. A 24 de agosto, durante uma visita à Casa dos Animais em Lisboa, Matos Fernandes anunciou sem cerimónia quem seria a primeira provedora do animal: Laurentina Pedroso.

O lugar para a revelação não foi escolhido ao acaso, a pessoa também não. Laurentina Pedroso esteve envolvida em 2013 no processo de criação do provedor do animal em Lisboa e na transição do canil/gatil municipal para a atual denominação de ‘Casa dos Animais’. Aos comandos da autarquia estava António Costa e poucos meses depois, Laurentina Pedroso dá mais um salto e integra a lista do Partido Socialista à Câmara Municipal de Lisboa na eleição que reconduz Costa na liderança da autarquia.

É uma velha conhecida dos socialistas a escolhida para o cargo recentemente criado (com um atraso de alguns meses, já que estava previsto para janeiro deste ano). Na altura, a indicação do ministro do Ambiente e Ação Climática de que seria Laurentina Pedroso a assumir a nova pasta não caiu bem ao grupo de trabalho que dois meses antes tinha sido criado pelo Governo para, entre outros, indicar precisamente quais deviam ser os critérios de escolha para o cargo.

O Bastonário dos Veterinários, Jorge Cid, veio a público dizer que não estava disponível “para continuar a palhaçada” e ameaçou abandonar o grupo de trabalho depois da revelação do ministro que, considerava, tornava “inútil todo o trabalho” desenvolvido pelo grupo que estava a refletir sobre questões ligadas ao bem-estar animal.

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Além de ter trabalhado de perto com a Casa dos Animais de Lisboa, Laurentina Pedroso foi Bastonária dos Veterinários entre 2010 e 2015 (antecedeu no cargo a Jorge Cid), o que poderia dar alguma tranquilidade à classe, mas o facto de até ao final do ano passado ter sido diretora executiva da Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes (APIC) está a gerar ainda mais desconfiança sobre a forma como o processo foi conduzido.

É que a esfera de atuação do provedor do animal não se cinge apenas aos animais de companhia. A ideia inicial de ‘provedor do animal de companhia’ ganhou a forma de ‘provedor do animal’ durante a discussão do Orçamento de Estado, numa cedência ao PAN segundo apurou o Observador. Assim, o provedor vai atuar também, por exemplo, no âmbito dos animais de produção, algo que já tinha sido anunciado pelo o ministro Matos Fernandes durante o debate de política de geral 8 de outubro na Assembleia da República, já depois da cedência ao PAN e que voltou a ser confirmado esta terça-feira. Os veterinários ouvidos pelo Observador questionam a legitimidade de alguém que durante mais de 10 anos esteve envolvida na defesa dos industriais das carnes e agora passará a ter que desempenhar funções de provedora dos animais, considerando que o provedor do animal será ouvido — com um prazo de 10 dias úteis — antes da “aprovação de atos legislativos ou regulamentares em matéria do bem-estar animal”.

Segundo a versão final do decreto que foi a Conselho de Ministros, a que o Observador teve acesso, o conceito animal é utilizado sem especificar tipos. Os pareceres emitidos pela Associação Nacional de Municípios e Confederação dos Agricultores de Portugal, refletem a preocupação das entidades pelo facto de o conceito utilizado ao longo de todo o decreto ser o de “animal”, não especificando se se tratam de animais de companhia, de produção, de espetáculo ou outros, lançando ainda dúvidas sobre a esfera de atuação do provedor do animal e com quem terá de se articular. Estando sob alçada do ministério do Ambiente (com a passagem dos animais de companhia para o ICNF) todo o restante deverá ser articulado com o ministério da Agricultura, de quem a DGAV depende, mas que já concentrava algumas das competências que agora são atribuídas ao provedor do animal.

Ao PAN, o partido que conseguiu forçar o Governo a incluir todos os animais e não apenas os de companhia sob alçada do provedor dos animais, o facto de Laurentina Pedroso ter um passado de defesa dos interesses dos industriais das carnes também faz soar campainhas. Ao Observador, a líder parlamentar Inês Sousa Real diz que o partido “tem algumas preocupações relativamente ao que possa ser a influência do setor das carnes”, mas frisa que a missão da provedora “deve e terá que ser a salvaguarda dos direitos dos animais, desempenhando as funções de forma equidistante, isenta e imparcial”.

Laurentina Pedroso foi escolhida pelo Governo, uma decisão que também o PAN contesta. “Se escolha dependesse do PAN teríamos ido buscar alguém que representasse as associações da proteção animal. Sendo um cargo de confiança política, o mandato tem que ser relativo ao que é a sua missão e esta é uma oportunidade de melhoria da política em matéria de proteção animal”, aponta Inês Sousa Real.

Provedor do animal pode acumular cargo com outras funções, nomeadamente em “instituições de ensino superior”

Mas há outra nuance no decreto que está a ser alvo de bastantes críticas. É que o Governo fez questão de excecionar dos conflitos para a função, especificamente quem desempenhe “atividades em instituições de ensino superior“. Ora, Laurentina Pedroso é precisamente a diretora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, em Lisboa, o que adensa as críticas no setor de que o cargo foi criado a pensar numa pessoa em concreto. Segundo o decreto,  “o provedor do animal pode exercer outras funções em regime de acumulação, nos termos da legislação em vigor”, respeitando os limites remuneratórios e de tempo, desde que não sejam funções “conflituantes ou incompatíveis com as funções de provedor do animal”, mas excluiu a “necessidade de mais formalidades”, designadamente para quem desempenhe “atividades em instituições de ensino superior”.

Laurentina Pedroso pode assim acumular o salário de professora com o que vai auferir como Provedora do Animal. Segundo a mesma versão final do decreto que foi a Conselho de Ministros, o provedor do animal é “equiparado para efeitos remuneratórios, de incompatibilidades, impedimentos e inibições, a dirigente superior de 1.o grau.”. Isto representa um total 3745,26 euros de remuneração mensal ao qual pode acrescer até  780,36 euros de despesas de representação.

O parecer da Associação Nacional de Municípios, a que o Observador teve acesso, foi frontalmente contra esta opção. “Discorda-se da possibilidade de o provedor do animal poder exercer outras funções em regime de acumulação. Ao não estar a tempo inteiro dedicado a uma matéria que exige dinâmica acrescida, agilização de procedimentos, rapidez de resposta, a figura do provedor do animal poderá não passar de mais uma entidade a criar entropia no sistema”, pode ler-se no parecer remetido ao Governo que, no entanto, não deu origem a qualquer alteração.

Fora das entidades ouvidas sobre o projeto de decreto regulamentar que institui o provedor do animal ficou a Ordem dos Médicos Veterinários que tinha, no entanto, integrado o grupo de trabalho constituído pelo Governo para o efeito. Ao Observador a Ordem dos Médicos Veterinários diz “estranhar não ter sido auscultada” e considera “incompreensível” não ter sido ouvida em relação a este diploma. Na mesma altura a ordem dos veterinários foi chamada a pronunciar-se sobre o decreto-lei da transferência de competências para as autarquias no domínio do bem-estar dos animais de companhia, mas não sobre o provedor do animal.

“O Governo prescindiu de receber os contributos da Ordem dos Médicos Veterinários relativamente ao diploma do Provedor do Animal, o que é particularmente incompreensível se tivermos em conta que o Bastonário da OMV integrou o Grupo de Trabalho para o Bem-estar Animal criado pelo Ministério da Agricultura e que tinha como uma das suas missões, traçar o perfil do Provedor do Animal”, considera a ordem, numa resposta enviada ao Observador.