Mais investimento em meios tecnológicos e metodologias novas, centros de competência especializados, mais articulação entre polícias e magistrados. Um dia depois de o país ter conhecido a decisão do juiz Ivo Rosa sobre a Operação Marquês na fase de instrução, o think tank Instituto +Liberdade promoveu um debate em que participaram a ex-procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, o ex-presidente do Tribunal de Contas Vítor Caldeira e a presidente da Transparência e Integridade, Susana Coroado. Vários dos tópicos mencionados estiveram relacionados com o tema da corrupção e concretamente com a dificuldade em provar este tipo de crime.

Sem nunca falar de casos concretos, Joana Marques Vidal, cujo mandato como procuradora ficou marcado pelo lançamento da Operação Marquês, apontou “linhas para soluções” quanto à dificuldade de obter provas de corrupção no atual enquadramento legal, um dos temas que mais têm sido discutidos depois de Ivo Rosa ter deixado cair crimes por que José Sócrates estava acusado por falta de provas ou prescrição dos prazos. Para a ex-procuradora, estando a corrupção “intimamente ligada à cultura e ao modo como nos organizamos em sociedade”, há soluções que devem passar por “investir na utilização de meios tecnológicos que em Portugal ainda não são utilizados” e que, no seu entender, permitirão uma aquisição de prova “mais rápida” e um melhor “cruzamento das informações”, assim como uma apresentação da prova em julgamento que permita uma “melhor apreensão dos factos”.

Como Ivo Rosa fez cair uma a uma as acusações de corrupção. Contra José Sócrates e os outros arguidos

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Notando que existe um progresso “até da sensibilidade comunitária” e uma maior “rejeição” ao fenómeno da corrupção, a antiga procuradora, que continua a exercer funções como magistrada junto do Tribunal Constitucional, defendeu a necessidade de investir em “centros de competência com magistrados e políticas a trabalharem de forma articulada e com uma formação muito especializada, constante e permanente”, a juntar a uma articulação maior também a nível internacional. No quadro das soluções caberia ainda um reforço da assessoria técnica que rodeie o juiz, “permitindo que haja uma decisão mais conhecedora dos meandros”.

Sendo um dos problemas que prejudicam estas investigações a demora dos processos, a ex-procuradora considerou ainda “essencial” investir em metodologias “que permitam uma investigação criminal muito próxima do momento” em que os supostos crimes aconteceram, ou até “muitas vezes a par e passo”. “Estamos a falar de investigações que começam a investigar factos que ocorreram há cinco, seis, sete anos, e isso torna muito complicada a prova e a apreciação em julgamento”. De novo, o tópico não era especificamente o da Operação Marquês, mas as perguntas e as respostas encaixavam nele — voltou a acontecer quando a magistrada respondeu a uma questão sobre os prazos de prescrição de crimes de corrupção, tendo defendido que a solução não passará necessariamente por alargar os prazos, que têm a ver com “a nossa estrutura do Estado de Direito”, mas sobretudo por “ter recursos e saber usá-los”.

As declarações de Marques Vidal foram ao encontro das de Vítor Caldeira, cuja substituição — que tal como a do procurador geral da República é proposta pelo Governo e executada pelo Presidente da República, e que tal como a de Marques Vidal gerou polémica — aconteceu no ano passado. Caldeira também considerou existir na produção de prova de corrupção uma “dificuldade relevante”, dado que se trata de situações “complexas” e que envolvem muita “criatividade” da parte de quem comete o crime.

Falando também como ex- presidente do Tribunal de Contas Europeu, Caldeira puxou pelas experiências de outros países, mencionando também métodos de investigação tecnologicamente mais inovadores e com recurso à inteligência artificial, formação dos magistrados, programas de “compliance” que exijam que haja registo de algumas atividades e transações e centros de competência com formação específica. Tal como Susana Coroado, Caldeira considera que a proteção dada a denunciantes — cujas regras serão transpostas de uma diretiva europeia aprovada em 2019 — também é  fundamental para encontrar provas materiais de corrupção, muitas vezes difícil de provar. “Temos de investir na prevenção e deteção, se não andamos sempre a correr atrás e não antecipamos”, resumiu o magistrado.

Falta de “vontade política” no combate à corrupção

Os alertas não ficaram por aqui e foram além da dificuldade de produzir provas: os intervenientes alertaram, por exemplo, para as limitações da Entidade da Transparência — aprovada há dois anos no Parlamento, mas ainda no papel — que servirá para fiscalizar as declarações de rendimentos e património dos políticos. “Não me parece que vá tão longe como devia ir, sobretudo no aspeto das portas giratórias”, criticou Caldeira. “Por aqui se vê o interesse e o investimento do Estado e a forma muito vagarosa de encarar estas questões”, completou Marques Vidal.

E aqui Susana Coroado não poupou nas críticas, garantindo que há “falta de vontade política” no combate à corrupção. “Tenho uma visão muito crua e realista do combate à corrupção: acho que é sempre questão de incentivos e desincentivos. Os governos apostam numa boa Autoridade Tributária porque isso traz receitas diretas. E como grande parte dos beneficiários da corrupção está no poder político, tem poucos incentivos para combater a corrupção”, resumiu . “Temos imensas incompatibilidades e impedimentos, qualquer dia ninguém pode entrar na política porque é barrado à entrada, mas uma vez no cargo é o faroeste. Não existem conflitos de interesse”.

Alertas sobre fundos europeus

O debate focou-se ainda nos perigos e alertas para o futuro, nomeadamente na gestão dos novos fundos europeus e no plano anticorrupção do Governo. Desde logo, Coroado falou nos riscos dos moldes da contratação para grandes obras públicas, com Caldeira a corroborar: o facto de os prazos para contratação serem curtos no quadro destes investimentos e as más memórias do passado — “tivemos portos e aeroportos que nunca tiveram tráfego” — aconselham a que se aposte muito na “transparência”, em conhecer os projetos de investimento em concreto e publicitar também os ajustes diretos.

Para Marques Vidal, será preciso melhor articulação e planeamento para fiscalizar a aplicação dos fundos, correndo-se o risco de haver “muitas comissões de acompanhamento e depois nenhuma delas exercer o seu poder”.

Joana Marques Vidal considera estratégia do Governo contra a corrupção “pouco ambiciosa”

Quanto à estratégia anticorrupção do Governo — que a ex-procuradora já tinha classificado como “pouco ambiciosa” –, todos de acordo: é um bom “primeiro passo”, como disse Marques Vidal, ou “rascunho”, expressão de Susana Coroado, mas faltam explicações sobre a “aplicação” dessa mesma estratégia, definição de “metas” ou medidas que “responsabilizem” os intervenientes para garantir que a estratégia é executada.