Em Portugal, mais de um em cada dez trabalhadores (11%) está em situação de pobreza. E a maior parte dos pobres não o são por não terem emprego ou por dependerem de apoios sociais que menorizem a ausência de salário; estão em situação de pobreza porque auferem salários baixos ou têm empregos precários.
As conclusões são do estudo “Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos”, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado pelo investigador e professor universitário Fernando Diogo, que lecciona Sociologia na Universidade dos Açores.
O estudo, que juntou uma equipa de 11 investigadores, dá pistas sobre quem são as pessoas em situação de pobreza em Portugal: 32,9% são trabalhadores, 27,5% serão reformados, 26,6% são precários e 13% são desempregados.
A percentagem de pessoas em situação de pobreza que trabalham (32,9% com vínculos efetivos e trabalho regular, 26,6% com trabalhos precários) permite perceber uma coisa: que a maioria das pessoas em situação de pobreza em Portugal trabalha. E entre os que trabalham, a maior parte (os tais 32,9%) tem vínculos laborais sem termo e aufere pelo menos o salário mínimo.
Os dados do estudo resultam da observação dos últimos dados disponíveis do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), relativos a 2018, aliada à realização de uma análise qualitativa baseada em “91 entrevistas aprofundadas por todo o país”.
Segundo o coordenador da equipa de 11 pessoas, essa metodologia inédita permitiu representar a “diversidade da pobreza em Portugal”, para perceber “como é que a pobreza se organiza” e porque “as pessoas em situação de pobreza não são todas iguais”.
Ordenados baixos não chegam e quase 50% dos desempregados estão em situação de pobreza
A análise conclui assim que praticamente um terço dos pobres (quase 33%, ou seja, quase um em cada três) são trabalhadores. Juntando-lhes os precários, percebe-se que mais de metade das pessoas em situação de pobreza trabalha, o que significa que “ter um emprego seguro não é suficiente para sair de uma situação de pobreza”, ressalva o documento.
Para Fernando Diogo, “foi uma surpresa” constatar que “a maior parte dessas pessoas era efetiva” nas empresas há vários anos, uma vez que os investigadores estavam à espera de encontrar sobretudo pessoas com uma trajetória de emprego “em carrossel”, em que se alterna entre atividade laboral precária, períodos de desemprego e “zona difusa entre trabalho e não trabalho”.
Há uma parte dos pobres que são efetivos nos seus postos de trabalho, muitos há mais de 10 e alguns há mais de 20 anos. Claro que com ordenados baixos, que têm de dividir o seu ordenado com a família, com uma família numerosa”, enfatizou.
Os resultados apresentados mostram também que em 2018 quase metade dos desempregados em Portugal estava em situação de pobreza, o que significa que são o grupo onde a taxa é mais elevada e tem vindo a aumentar.
Quase um quinto dos portugueses estão em situação de pobreza
Apesar das oscilações na variação da taxa de pobreza ao longo do período observado, entre 2003 e 2019, “o valor está sempre próximo de um quinto do total da população” e os últimos indicadores, de 2018, são de 17,2%, o equivalente a 1,7 milhões de pessoas.
A taxa de pobreza infantil “é persistentemente mais elevada do que a taxa global”, frisou o coordenador do estudo, que alerta para duas tipologias de famílias com taxas de pobreza acima da média global: famílias monoparentais ou onde existem dois adultos com três ou mais crianças.
“Cerca de um terço dos indivíduos de cada uma destas categorias está em situação de pobreza, o que é um valor muito significativo. Há muito poucas categorias que tenham valores deste género”, acentuou Fernando Diogo. “Os agregados onde existem crianças são aqueles em que a taxa e pobreza é mais elevada”, acrescentou.
O estudo destaca a “dimensão familiar” da pobreza, uma vez que muitos entrevistados são pobres porque não têm rendimentos, eles são irregulares ou são baixos e têm de os partilhar.
A pobreza herda-se: há uma “reprodução intergeracional da pobreza”
A análise confirmou ainda a “natureza estrutural” do fenómeno, mantendo-se uma parte expressiva da população nessa situação ao longo de anos e existindo um “processo de reprodução intergeracional da pobreza”, identificando-se pessoas que “cresceram num contexto mais ou menos de privação, condicionando, à partida, as suas oportunidades na vida”.
A entrada precoce no mundo do trabalho e o abandono dos estudos são alguns dos principais fatores.
As pessoas dos quatro perfis identificados têm em comum estarem, a maior parte, em situação de pobreza “há muito tempo e terem herdado essa situação dos pais”, conclui a investigação, vertida em livro.
O estudo permite ainda estimar a probabilidade acrescida de pobreza de determinados grupos ou categorias sociais, como os que têm como principal fonte de rendimento do agregado transferências sociais do Estado, à exceção das pensões, e os agregados com dois adultos e três ou mais crianças.
Fernando Diogo menciona ainda os “três D da pobreza: desemprego, doença e divórcio”, fatores que produzem essa situação, impedem que as pessoas saiam dela e a podem intensificar.
Segundo o coordenador do estudo, “a maior parte das pessoas não acha que seja pobre” ou relativiza em comparação com situações de miséria.
“As pessoas não estão a viver situações fáceis e racionalizam, de forma a conseguirem sobreviver à sua própria situação e minimizar o impacto stressante da situação em que vivem”, explica Fernando Diogo, à agência Lusa.
Para o coordenador do estudo, a estruturação da pobreza em quatro perfis é importante porque permite dar respostas a problemas específicos.
“Há diferentes perfis de pobreza em Portugal que que acabam por requerer diferentes abordagens. Se por um lado isto faz avançar o conhecimento sobre a pobreza em Portugal, por outro permite uma discussão sobre o assunto e permite a aplicação de políticas públicas de combate à pobreza mais eficazes, porque mais próximas do alvo”, referiu Fernando Diogo.
A taxa de pobreza corresponde à percentagem de indivíduos com rendimento inferior a 60% do rendimento mediano observado no país num determinado ano e situava-se, em 2018, nos 501,2 euros mensais.
Pandemia traz mais “regressados à pobreza” do que “novos pobres”
As pessoas que vão cair em situação de pobreza devido à pandemia serão quem saiu e regressa a essa condição e quem já se encontrava em cenários de vulnerabilidade, e não “novos pobres”, vaticina um estudo.
De acordo com o estudo “Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos”, faz “mais sentido falar de vulneráveis empobrecidos (e regressados à pobreza) do que de novos pobres”.
No caso da crise provocada pelos efeitos da covid-19, marcados por “um elevado grau de incerteza”, por depender “da intensidade e da sua duração”, o que está em causa é “um possível aumento da intensidade da pobreza” e, para os mais vulneráveis, “um (re)ingresso nessa situação”, segundo o estudo.
“A maior parte das situações de pobreza em Portugal são pobreza tradicional, porque persistente ao longo da vida dos indivíduos e porque há uma tendência forte para se reproduzir entre gerações”, enfatizou, em declarações à agência Lusa, o coordenador da análise, Fernando Diogo, professor de Sociologia na Universidade dos Açores.
Embora não desvalorize as consequências da atual crise na criação de dificuldades em quem antes não as tinha, o investigador acredita que “esse impacto vem acrescentar pouco ao que já existe” em relação à população “com determinadas caraterísticas”.
“O que está escrito sobre a pobreza em Portugal não vai ser muito modificado pelo impacto da covid-19”, antecipa Fernando Diogo, que antevê “mais gente em situação de pobreza”.
Segundo o académico, “muitas são pessoas que saíram da pobreza e regressam à pobreza, muitas são pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, que pouco se distinguem dos pobres, a não ser por rendimentos um pouco acima do limiar de pobreza”, e qualquer fator que afete a estabilidade ou a conjuntura os faz cair numa situação de pobreza.
“Pessoas que verdadeiramente entram pela primeira vez em situação de pobreza, apesar de tudo, continua a ser uma minoria. Claro que existe, claro que está a aumentar agora com a crise, mas não é isso que é o cerne da pobreza em Portugal”, argumentou.
Os “vulneráveis empobrecidos” estão (também) na restauração e serviços
Fernando Diogo vincou que parte importante dos pobres em Portugal são indivíduos que alternam entre a pobreza e a vulnerabilidade.
“Qualquer incidente de percurso, como o desemprego numa situação de crise, os faz voltar à situação de pobreza, não sendo por isso exatamente novos pobres, mas indivíduos com retorno à condição de pobreza. O que está em causa, portanto, mais do que novos pobres, são os vulneráveis empobrecidos, muitos regressados à situação de pobreza”, reforçou.
No estudo divulgado esta segunda-feira é referido que quem trabalha em setores como o turismo, a restauração ou os serviços em geral está particularmente vulnerável ao desemprego. Quem tem vínculos precários ou informais também está mais suscetível de passar a viver num contexto de pobreza.
“Contudo, a falência das empresas trará, potencialmente, para a pobreza, mesmo os indivíduos com vínculos mais sólidos”, com a agravante de se um trabalhador ficar desempregado poder “levar todo o seu agregado para a pobreza”, dependendo da configuração do agregado familiar, antecipa o estudo.
O documento alerta que “o tempo pode ter um efeito cumulativo no desenvolvimento desta situação”, já que à medida que os subsídios de desemprego terminarem, os rendimentos das famílias diminuirão”.
Quem está desempregado ou desocupado vai ver reduzidas as possibilidades de “conseguir uma atividade remunerada, por precária e informal que seja”, enquanto trabalhadores precários ou informais “mais facilmente podem ser dispensados” e “muitos não terão, sequer”, direito a apoios sociais.
Os 11 investigadores que participaram no estudo sublinham que “a pandemia e suas consequências estão já a ter um efeito na pobreza em Portugal, intensificando-a e aumentando o número de pessoas nessa situação”, com a certeza de que “não está a atingir todos por igual e os mais pobres estão a ser mais afetados”.
O que leva alguém a passar para o lado de lá da pobreza: os três D’s
O desemprego, a doença e o divórcio são fatores que contribuem para a entrada numa situação de pobreza ou que impedem que se saia dessa condição, segundo o estudo “Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos”.
O documento divulgado esta segunda-feira, chama a esses três processos de produção, reprodução ou intensificação dessa situação “os três D da pobreza”.
“Se nos debruçamos sobre os fatores que levam as pessoas entrar na pobreza, são os mesmos que impedem que elas saiam”, disse, em declarações à agência Lusa, o coordenador do estudo, Fernando Diogo, professor de Sociologia na Universidade dos Açores.
O académico realçou que esses três motivos individuais que “afetam fortemente a vida” das pessoas “e constrangem as suas escolhas” devem ser entendidos também “a nível contextual”.
Fernando Diogo enfatizou a articulação com a organização do mercado de trabalho, “onde se incluem as questões da precariedade, da informalidade, dos baixos salários e da zona intermédia entre emprego e desemprego”; dos apoios estatais, como são os casos dos apoios na doença e no desemprego, e das questões mais conjunturais, como períodos de crise.
“Claro que há sempre casos que saem disto, mas a esmagadora maioria dos casos são explicáveis com a conjugação destes fatores, em geometria variável e no respeito pela singularidade de cada perfil e de cada percurso individual”, vincou.
Doenças, nomeadamente crónicas ou incapacitantes, têm ligação estreita com a pobreza
A equipa que desenvolveu o estudo, salientou o autor, ficou surpreendida “com o peso da doença”, mencionado por muitos dos 91 entrevistados, “para ajudar a explicar a situação de pobreza delas ao longo do seu trajeto”, especialmente entre os reformados, mas também os desempregados.
Fernando Diogo sublinhou referir-se a doenças crónicas ou incapacitantes, como deficiência.
“Os relatos vão no sentido de mostrar como a incidência da doença afetou as suas vidas ao longo de toda a sua vida. A doença ajuda a explicar porque é que estão na situação difícil em que estão“, salientou o coordenador, que se refere maioritariamente ao perfil dos reformados, mas também aos desempregados, em particular de longa duração.
Tal como a doença, dos próprios ou de familiares, é referida a morte de pessoas do agregado como fator que dificultou a trajetória dos entrevistados no âmbito do estudo ou que precipitou a entrada num contexto de pobreza.
A doença ou a morte, realçou o investigador, não é um problema individual, mas com impacto no círculo familiar, tal como acontece com o desemprego.
Também o divórcio, ou a separação dos casais, segundo o estudo, “em situações que já de si são de grande fragilidade, leva facilmente os indivíduos para a pobreza, considerando a redução de rendimentos causada pela separação e os seus efeitos em cascata, incluindo na atividade laboral”.
“Estes elementos estão presentes na trajetória de vida dos entrevistados, agravando situações já de si difíceis ou condicionando fortemente a vida dos indivíduos, reduzindo a sua margem de manobra e tornando as suas possibilidades de saírem da situação de pobreza mais remotas”, acentuou o estudo hoje apresentado.