De passeios apaixonados num descapotável em Londres a fugas mirabolantes dos paparazzi, a vida do príncipe Filipe atrás do volante foi tão cheia de curvas e contra curvas quanto a sua história pessoal. Ao longo dos tempos foi-se criando a associação de que um membro da família Real ou anda de coche dourado ou num daqueles SUVs de vidros escuros contudo, no caso do marido de Isabel II, pensar dessa forma é, no mínimo, redutor.
Desde muito jovem que a paixão do Duque de Edimburgo pelos veículos motorizados de quatro rodas foi um dos seus cartões de visita. Aliás, foi precisamente um acidente de carro, em Sandringham, que pôs fim à sua carreira de condutor — mais de 70 anos a carregar no acelerador, escreve o The Telegraph.
Se mais provas ainda fossem necessárias para justificar a forte ligação de Filipe com o mundo dos automóveis basta lembrar que o veículo que transportará o caixão do consorte será um Land Rover (uma das marcas fetiche de Filipe) totalmente adaptado pelo próprio duque, um modelo que na sua funcionalidade original funcionaria para transportar armamento no exército britânico. O Defender 130 Gun Bus em questão, conta o Robb Report, foi totalmente feito de acordo com as especificações do príncipe: em 2016, quando lhe foi entregue pela Foley Specialist Vehicles, vinha com acabamentos em cabedal verde e carvalho francês, uma cabine de passageiros enorme, ventilação, iluminação LED e muito mais. Esta extravagância, que dará agora a Filipe a sua última boleia, não deixa de ser só um exemplo daquilo que foi a coleção de veículos do marido da rainha Isabel II.
O na altura tenente Filipe Mountbatten terá começado a cortejar a jovem princesa Isabel em meados da década de 1940 a bordo de um MG TC de dois lugares. Olhando para o veículo segundo os padrões modernos, é quase risível notar que este carro de fabricação britânica oferecia uma modesta velocidade máxima de pouco mais de 110 km/h. Na altura, porém, era uma autêntica bomba, conseguindo ir dos zero aos 100 em 22 segundos, tempo mais que suficiente para fugir de fotógrafos intrépidos que, num dia em que o jovem casal foi dar um passeio de carro por Londres, os tentaram importunar. Quem conta esse episódio, como realça o Telegraph, é a própria rainha num livro de lembranças do seu Casamento Real:
O Filipe gosta de conduzir e de andar rápido! Ele tem seu próprio MG, do qual tem muito orgulho. […] Uma vez levou-me nele até Londres, o que foi muito divertido, só que era como estar sentada na própria estrada. Nessa ocasião fomos perseguidos por um fotógrafo, o que foi dececionante. ”
Podia dar se o caso de Filipe acalmar a sua veia de Juan Manuel Fangio depois de casar com Isabel, mas não. Nada disso. Em 1953 foi fotografado num carro de corrida Aston Martin, no Goodwood Motor Circuit, e um ano depois, por exemplo, trocou o seu MG TD (que fora oferecido pelo pai de Isabel) por um Aston Martin Drophead Coupe Lagonda de 3 litros, viatura muito mais potente que viria a ser um dos grandes amores do duque.
Com uma velocidade máxima de mais de 160 km/h (uma alucinação, para a altura), o carro era muito mais imponente que o pequeno MG e era tão apreciado por Filipe que a Aston Martin asseguraria o seu primeiro fornecimento à casa real. Ainda assim, como várias vezes aconteceu, o duque de Edimburgo fazia sempre questão de pedir uma ou outra modificação e neste caso isso não foi diferente: Filipe fez com que o tal Lagonda fosse equipado com um rádio-telefone (algo absolutamente extravagante, principalmente tendo em que conta que na altura o simples facto de se ter um rádio para ouvir a BBC no carro já era raro). Foi nesse carro também, graças ao telefone, que muitas vezes brincou com o jovem príncipe Carlos e a princesa Ana simulando chamadas falsas. Este Lagonda, diz-se, também terá sido equipado com um espelho especial, mais largo, no lado do condutor — teoricamente para a rainha poder arranjar-se antes de sair da viatura.
Filipe amava tanto este seu Aston Martin que não só o despachou para a Austrália em 1956, a propósito da sua viagem a Melbourne por causa dos Jogos Olímpicos, como foi o carro escolhido para o casal real, em 1959, inaugurar oficialmente a M1, a primeira autoestrada da Grã-Bretanha.
Mais tarde, no início dos anos 60, o príncipe apaixonou-se por um Alvis TD 221 Drophead Coupe, descapotável britânico que estava a ser apresentado no British Motor Show (que o duque visitava religiosamente). Não tardou a juntá-lo à sua coleção de carros mas, claro, exigiu umas modificações. Entre elas, a mais caricata terá sido o pedido para aumentar o para-brisas, tornando-o mais alto de forma a corresponder melhor aos seu porte de mais de 1,80 metros.
Mas a vida não é só feita de descapotáveis e sedans, também há espaço para citadinos mais compactos e de confiança, daí a escolha do duque por um Hillman Imp, carro pequeno lançado em 1963 com objetivo de competir com o já famoso Mini. Reza a lenda que Filipe terá ido levantá-lo à fábrica onde foi produzido, nas Midlands, e mal lhe passaram as chaves ligou o carro e seguiu caminho a alta velocidade, deixando para trás o fumo e o chiar dos pneus. Foi daí para a frente que os gostos passaram a recair principalmente nos Jaguar e, sobretudo, nos Land Rover — ao longo da sua vida teve mais de 30.
O primeiro Land Rover de sempre foi apresentado poucos meses depois do casamento real de Isabel e Filipe, em novembro de 1948. Criado com o objetivo de ser o concorrente do Jeep norte-americano, este 4×4 britânico foi acompanhando sempre o crescimento da família. Após a morte de Jorge VI em 1952 (a quem a marca tinha oferecido o Land Rover número 100), não demorou muito até o casal ser catapultado para a ribalta — o casal e o Land Rover que o transportou durante a tournée de 1954 na Austrália.
Esse jipe, que foi batizado com o nome State IV e foi o primeiro carro oficial da rainha depois de ter tomado posse, tornou-se icónico. Entregue na Casa Real em 1953 por uma equipa de engenheiros — entre os quais Arthur Goddard, o primeiro engenheiro da Land Rover –, o veículo não tinha placas de matrícula. Os veículos da rainha, quando usados em missão de estado, não necessitam de as ostentar. Durante os seis meses que foi utilizado na famosa digressão australiana, entre mar e estrada, percorreu pouco mais de 80 mil quilómetros — de Londres à Nova Zelândia e Austrália, passando depois por Ceilão (Sri Lanka), Aden (Iémen) e África. O exército australiano chegou a criar um destacamento especial para estar sempre a acompanhar o veículo, a ‘Royal Car Company’ que era composta por sete oficiais e 104 membros do exército (todos eles terão recebido três meses de treino especial para este destacamento, foram até ensinados a conduzir a velocidades cerimoniais.
O State IV esteve ao serviço da casa real durante mais de 20 anos até ser substituído, nos anos 70, pelo State I, um Range Rover personalizado que, por exemplo, apresentava uma velocidade máxima de 150 km/h enquanto o seu antecessor, o velhinho State IV, só chegava aos 82 km/h. Foi assim que nasceu o amor da família real pela marca de carros: quase todos já tiveram pelo menos um jipe desta marca e Zara Tindall, a neta mais velha de Isabel II, chegou mesmo a ser nomeada a embaixadora da Land Rover em 2006.
Dos passeios todo o terreno em Balmoral às missões de Estado, não há cenário onde não se veja a utilização deste jipe — tornado icónico juntamente com a sua pintura verde escura. Como recorda o The Telegraph, em 2016 Filipe fez questão de ser o motorista da mulher, Isabel II, e do casal Barack e Michelle Obama. A bordo de um Land Rover, claro, passearam os quatro pelo Castelo de Windsor.
Foi mais ou menos por essa altura, em 2015, que o casal real estreou outro bólide desta marca britânica, Range Rover híbrido diesel/elétrico mais alongado, reminiscente de uma limousine, quase, com uma zona traseira aberta, como é habitual, para que Filipe e Isabel pudessem acenar aos seus súbditos em eventos oficiais. Pelo menos até 2019, Filipe manteve-se fiel ao seu Land Rover Freelander, o mesmo que protagonizou o acidente que envolveu o duque, duas mulheres e um bebé. Ninguém ficou ferido com gravidade nesse episódio (uma das mulheres teve um pulso partido, apenas), e a Land Rover, no espaço de poucos dias, já estava a enviar para Balmoral um novo Freelander exatamente igual ao que o duque tinha mas o mesmo já não chegou a ser usado — o príncipe entregara, depois do acidente, a sua carta de condução.
Este sábado, o tal Land Rover militar transformado em carro funerário marcará não só o último adeus da família real e dos britânicos ao consorte mas também, de certa forma, a despedida do príncipe da marca de que tanto gostava.