Título: Convento de São Pedro de Alcântara
Autores: João Miguel Simões, Luísa Colen, Inês Sequeira
Prefácio: Vítor Serrão
Editor: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Design: Silva Designers
Páginas: 224, ilustradas
Preço: 25 €

Depois dos volumes dedicados aos palácios Portugal da Gama e do conde de Tomar — atuais Casa Ásia e Centro Cultural Brotéria —, e como inicialmente previsto no plano editorial desta coleção de livros Património, criada em 2016, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa publica o correspondente ao estudo histórico, reabilitação e vocação atual do convento de São Pedro de Alcântara, que lhe pertence há quase dois séculos. Quem admira o panorama do miradouro homónimo deve saber que tem pelas suas costas um verdadeiro tesouro por descobrir, transposto o portão de ferro forjado e galgados os dois lances de escada que dão acesso à igreja e ao extenso convento que recua até à Rua da Rosa e quase delimita o Bairro Alto a norte. O livro tem o dobro das páginas dos que o antecedem, relativos aos referidos palácios na mesma rua, e isso já nos diz alguma coisa acerca da importância local deste edificado, aliás objeto de considerável bibliografia (pp. 221-24).

O terramoto de 1755 sacudiu, maltratou bastante mas não deitou ao chão o edifício erguido a partir de 1672 para residência conventual de 12 franciscanos arrábidos (a Ordem já tinha austeros ermitérios em Sintra e na Serra da Arrábida) em lotes de terra e construções cedidos num primeiro momento pelo vizinho marquês de Marialva, depois somados a outros, por doação ou compra, de Marcos Rodrigues Tinoco e dos condes de Avintes (v. fig. 3, p. 25), e não foi portanto especialmente determinante na sua longa “história de grandezas e misérias”, em que houve períodos de “manifesto declínio”, com “perda e dispersão de inestimáveis riquezas” de arte patrimonial (Serrão, p. 7) — levando João Miguel Simões a dedicar quase 100 páginas do seu ensaio ao que chama em título “Património artístico subsistente” (pp. 93-196). Numa igreja sem irmandades laicas, a capela privada dos Lencastre, condes de Vila Nova de Portimão e uns dos financiadores da obra, construída entre 1696 e 1698 com retábulo marmóreo, revestimento parietal de entarsia e teto pintado com brutescos em 1761, destaca-se verdadeiramente como “ótimo testemunho erudito da arte total do Barroco” (Serrão, p. 9), capaz de impressionar — talvez um pouco contraditoriamente, mas a palavra é essa — muitos dos seus visitantes, seja pela inesperada beleza do lugar, seja pelo facto de ali se encontrar sepultado D. Veríssimo de Lencastre, cardeal inquisidor e inquisidor-mor do Reino de 1653 a 1681… Porém, não foi caso único. Na sala do capítulo foi tumulado em 1768 Manuel da Maia, engenheiro-mor do Reino e um dos génios da reconstrução pombalina e do Aqueduto das Águas Livres (p. 52), com ramal que passava por ali e terminava no atual largo do Teatro de São Carlos, e, admite Simões (p. 62), “a igreja do convento […] parece ter-se tornado, nos últimos anos [do século XVIII], num “panteão” de engenheiros militares”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quem chegue à igreja e convento de São Pedro de Alcântara pode ser instintivamente levado a pensar que foi a “magnífica vista sobre a cidade” (Simões, p. 38) que determinou a entrada principal, mas não foi assim desde o início. Os primórdios do convento e da sua “pequena” (p. 23) igreja primitiva faziam-se pela face a poente, sendo por isso necessário considerar duas fases construtivas, 1670-72 e 1672-86, esta última abraçando todo o sector virado a nascente, sobre palácio adquirido aos condes de Avintes e do qual subsistiram até nós elementos típicos da arquitetura palaciana — “que não se coaduna com a regra capucha” —, como a escadaria de aparato e pormenores maneiristas de cantaria. Para certeza de que essa expansão fora imaginada antes mas sofreu de impasse até 1681, basta a opção do marquês de Marialva, falecido em 1675, de se fazer sepultar na igreja dos capuchos em Cantanhede. “O novo corpo nascente assumiu-se como dominante, relegando o anterior corpo poente para secundário e posterior. Porém, até meados do século XVIII, a maioria dos frades vivia e trabalhava no corpo poente, estando o nascente ocupado apenas pela igreja e por alguns anexos de piso térreo” (Simões, p. 40).

“São Pedro de Alcântara foi a sede dos franciscanos arrábidos entre 1661 e 1732, mantendo informalmente essa característica até 1833” (Simões, p. 64). Em 1701 o convento tinha “celas suficientes para dar habitação a mais de quarenta frades” (cit. p. 50), mas três décadas depois o rei D. João V decidiu aumentar o convento, dando-lhe capacidade para sessenta, com melhores dormitórios construídos em 1736-52 por empreiteiros de Mafra também ocupados em obras régias na capital. Em 1769, eram já 74 as celas para os 68 frades residentes — ou seja, uma capacidade 6,16 vezes maior do que a inicialmente autorizada pela Coroa, apenas um século antes, em 1671. Em 1754, chafariz de cinco bicas enquadrado no chamado “aqueduto do Loreto” havia sido instalado mesmo em frente ao convento, facilitando “o aumento substancial do número de frades” (Simões, p. 55). Em 1783-85 intervenção de vulto foi levada a cabo por ordem da rainha D. Maria I, com várias obras de consolidação estrutural, “campanha artística profunda na igreja e na sacristia” (“genericamente a que chegou até nós”, p. 95), criação da “monumental” sala de antecoro, mas também abertura da porta do carro da Rua da Rosa, com um túnel de acesso ao pátio grande que é todo um “feito de engenharia” e “obra de grande qualidade” (Simões, pp. 56, 60; figs. 85-86, p. 61). Por menos de uma década, no fim da própria vida como daquela do convento enquanto tal, haveria de também residir e trabalhar ali o cronista-mor do Reino Cláudio da Conceição, frade arrábido cuja biblioteca pessoal de 1248 volumes foi inventariada aquando da extinção (contaram-se nessa altura 6021 na livraria do convento, muitos deles dedicados à prática musical de cantochão, habitual nas celebrações dos conventos capuchos).

Antero de Quental, que por algum tempo viveu muito perto dali, escreveu com alguma graça que “a história é uma série de remendos numa série de buracos”. O património artístico que o diga… Ainda assim, historiadores dispõem hoje de documentos como os inventários de 1833 e 1910, papéis guardados no arquivo histórico da Santa Casa e descrições do edifício feitas pela literatura religiosa, como é o caso de Espelho de Penitentes (1737), e dispõem de toda uma bibliografia de estudos comparados, para reavaliarem o “riquíssimo” (Serrão, p. 8) acervo de pintura, escultura e azulejaria ali reunido ao longo de século e meio, ou mais, identificando os seus protagonistas, mas também para enquadrar sucessivas campanhas estéticas e as atualizações doutrinárias que as determinaram na contínua reconfiguração espacial e funcional que os recentes trabalhos de reabilitação e restauro revelam, e permitem trazer a debate com uma acuidade sem rival. E é por isso que publicações deste tipo se justificam em absoluto com o estatuto de “estado da arte” propiciado pelo trabalho articulado de arquitetos, historiadores e empreiteiros de obra, a que se juntam museólogos com atualizados estudos iconológicos e iconográficos de quadros a devido tempo preventivamente deslocados dos espaços conventuais para que foram destinados.

Expostas na sacristia, uma série de telas alegóricas de Bento Coelho da Silveira, pintor régio de D. Pedro II, desenvolveu de forma original a maioria das gravuras de autor anónimo incluídas no guia moral Regia Via Crucis (Antuérpia, 1635) de Benedictus Van Haeften, dando-lhes “maior teatralidade e leitura narrativa de acordo com o programa ideológico pretendido”, o ideário de pobreza dos frades arrábidos. Outro belo quadro do mesmo pintor — atualmente deslocado no Museu de São Roque, como a maioria deles, ou os melhores deles — tem afinidades muito inesperadas com obras da sua contemporânea italiana Elisabetta Sirani (1638-65), pressupondo resultar de encomenda duma “cliente aristocrática com conhecimento da obra de Sirani que veio parar à posse dos frades arrábidos em data posterior” (Simões, p. 122), enquanto outro ainda, que pelo tema se crê ter pertencido ao refeitório conventual — Ceia Mítica entre Jesus Cristo, São Pedro de Alcântara e Santa Teresa de Ávila —, é de artista ainda por identificar, talvez Francisco José (1750-c.1820), advoga Joaquim Caetano, talvez “um pintor espanhol ou ibero-americano afeto aos capuchos da Arrábida”, prefere Simões, atendendo ao “grande desenvolvimento do tema no mundo ibero-americano” (p. 123). São Pedro de Âlcantara e Santa Teresa de Ávila têm uma visão da Imaculada Conceição, pintada c. 1780, é “um tratado teológico” (Simões, p. 138) em que o anjo anunciador ao centro “é uma inovação [iconográfica] do pintor português” Joaquim Manuel da Rocha relativamente a obras italianas congéneres.

Outras atribuições estão em ato. A Miguel de Paiva (c. 1590-1645), pintor régio de Filipe II, tem sido atribuído o quadro Êxtase de São Francisco de Assis, c. 1620, mas João Miguel Simões admite agora que, “muito provavelmente”, é obra de “artista amador, eventual frade arrábido que se aventurou na arte da pintura”, “pouco informado das novidades artísticas”, ou de “pintor profissional a quem se pediu que deliberadamente pintasse pobremente, para que a obra de arte final se coadunasse com o manifesto de pobreza da Província” (pp. 127, 125). Também sob reavaliação autoral está o ciclo pictural dedicado à vida do Santo e de início instalado no coro-alto da igreja (onde, à parte, os frades assistiam às missas), que passa — ainda sob reserva — da mão do pintor António Pereira Ravasco para a de frei Diego Frutos (1700-54), pintor espanhol interno da Ordem com obras seriais nos conventos de Valladolid, El Abrojo e La Aguilera de Aranda del Duero. Estas telas são dos mesmos anos e da mesma campanha joanina, já referida, e porque seguiram as mesmas gravuras não canónicas — todavia, ainda por localizar e assim não aqui reproduzidas, como sucede a outras — que os seis painéis de azulejos criados para a capela-mor, “uma colaboração entre o pintor de azulejos e o pintor de telas” é admitida (Simões, p. 156).

Apesar dos votos capuchinos, representações não faltavam nos espaços do convento, algumas das quais, inclusive, trazidas do Mosteiro de Mafra por volta de 1772, como a bela tela de Francesco Trevisani representando São Conrado (fig. 112, p. 179). Nas paredes do antecoro, por cima dos bancos, retratos de veneráveis frades da Província da Arrábida serviam de modelos de espiritualidade, obediência e penitência, e a quem se dirigisse à sacristia uma outra série de retratos tornava presentes outros tantos bispos, alguns dos quais serviram em Macau e no Brasil com especial distinção. (Esta galeria de retratos é tida como “uma das melhores a nível nacional”, e a “sua restituição à sala dos bispos do convento de São Pedro de Alcântara valorizou este conjunto, bem como o edifício enquanto espaço de fruição cultural”, escreve Simões à p. 150). Num roteiro biográfico-espiritual evocativo são os citados painéis de azulejo que desde 1730 na capela-mor, e desde c. 1780 na nave da igreja, contam a resplandecentes azul e branco os principais feitos de São Pedro de Alcântara, e depois — ou antes, no limiar entre os espaços sacro e profano — há ainda medalhões azulejares da década de 1770 que patenteiam as diferentes formas de vocação assistencial e caritativa dos frades da Província da Arrábida, do auxílio aos lactantes à oferta de pão a pobres, peregrinos, órfãos e aleijados. Embora reproduzido em formato pequeno (fig. 91, p. 166), pelo seu significado — e neste preciso contexto — o painel em que o Santo, Jesus Cristo e São Francisco de Assis caminham lado a lado em direção a um mosteiro talvez merecesse ser graficamente destacado. O livro também ganharia com uma esquematização da distribuição original das suas obras de arte pelos diferentes espaços, especialmente atendendo ao facto de boa parte delas se encontrar atualmente no Museu de São Roque ou dispersas por “outros espaços da Santa Casa” (p. 178). “Em 1841 o órgão da igreja foi afinado, tendo sido transferido para a igreja de São Roque […], onde ainda hoje se encontra” (p. 67).

Após a extinção das Ordens religiosas, o convento de São Pedro de Alcântara foi adaptado a “recolhimento de órfãs”, aproveitando bem as valências residenciais existentes, e a partir de 1953 serviu como escola de auxiliares sociais em regime de internato. A essa nova história não faltou investimento em beneficiações no estritamente necessário, desde logo delimitando espaços feminino e masculino — a igreja manteve-se ao culto —, transformando celas individuais em camaratas, introduzindo água corrente (logo em 1834), eletricidade (1877) e uma cozinha industrial a vapor (1895). Durante a República de 1910 nada se fez, como é óbvio. “Perante a inexistência de obras de fundo desde 1904-6, tornou-se inevitável a intimação feita pela CML, em 1941, para a realização de obras gerais de beneficiação” (pp. 77-78), as quais acabariam por avançar com o ministro Duarte Pacheco, e depois dele outras vieram, dependendo sempre do dinheiro de todos e da morosidade pública (obras aprovadas em 1955 foram feitas em 1962; pp. 80-81).

Essa ocupação e as afins que se lhe seguiram continuaram até 2012, e seis anos depois, com esta reabilitação, a Santa Casa reconverteu o convento de São Pedro de Alcântara em “Casa do Impacto”, uma designação que sugere perplexidade instantânea mas designa afinal, com todos os tiques de um certo linguajar atual, “um hub de inovação para empreendedores de impacto que têm o objetivo de querer adicionar valor — social e ambiental — ao meio em que se inserem” (Inês Sequeira, p. 199). A humildade dos primitivos frades arrábidos, e o bom senso que hoje tão nos é exigido, dificilmente se daria ou dá bem com a vacuidade ou o completo desvario de frases como “fundadores que trabalham duro, que têm a coragem de testar novas ideias e procurar resultados inovadores” ou “uma casa aberta a todos os negócios que dão respostas aos desafios da nossa sociedade, aos valores intangíveis das parcerias e da colaboração” (Sequeira, pp. 203, 205). Todavia, em sítio de tanta fé até milagres são possíveis… Boa sorte!