Um ano depois, a sessão solene de comemoração do 25 de Abril na Assembleia da República voltou a decorrer com limitação de convidados e restrições — e neste que foi o 47.º aniversário da Revolução, com todos os intervenientes tapados pelas máscaras, ao contrário do que aconteceu em abril de 2020, altura em que o uso de máscaras ainda não tinha sido generalizado nem tornado obrigatório.

Para além de Eduardo Ferro Rodrigues e de Marcelo Rebelo de Sousa, ao longo de cerca de uma hora discursaram os representantes dos nove partidos com assento parlamentar — e protestou, em silêncio e através de uma mensagem escrita na roupa, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues, ex-PAN. “Censura”, podia ler-se a letras brancas na camisola que usou; “Mesmo que sozinha, mesmo que não me deixem falar, lutarei sempre pela liberdade e igualdade”, escreveu nas redes sociais, em protesto por os deputados sem grupo parlamentar (o que também inclui Joacine Katar Moreira, ex-Livre) não terem tido direito a falar na sessão solene.

João Cotrim Figueiredo, líder do Iniciativa Liberal, protagonista da polémica da semana, que começou por deixar o partido de fora do tradicional desfile de 25 de Abril na Avenida da Liberdade e acabou com os liberais a recusar a oferta da Comissão Organizadora e a marcar o seu próprio desfile, para uma hora mais tarde, foi o primeiro a discursar, logo depois de Ferro Rodrigues. E voltou a repetir aquilo que disse ao longo dos últimos dias na comunicação social: o 25 de Abril é de todos e “uma data da qual ninguém se pode apropriar”. “A esquerda sectária do alto da sua arrogância moral acha que é dona do 25 de Abril. E a direita ambígua permite-o por falta de comparência. A IL diz: Presente”, atacou Cotrim Figueiredo. Depois, fez uma radiografia dos problemas do país e lembrou os atrasos da justiça e a falta de oportunidades para os “jovens que não têm o cartão partidário certo”.

Numa manhã em que os cravos vermelhos foram, como sempre, reis, na lapela ou na mão, como o Presidente da República faz questão, houve também um cravo branco — de Francisco Rodrigues dos Santos, líder do CDS, que contaria no final da sessão, parafraseando Salgueiro Maia, que quando os militares chegaram ao Rossio lhes ofereceram não apenas cravos vermelhos, mas também brancos e até outras flores, isto para dizer que “o 25 de Abril também se fez para não sermos todos vermelhos” e que “é preciso libertar Portugal da hegemonia socialista” — e cravos negros, estes apenas no discurso do deputado único do Chega.

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“Os cravos vermelhos deviam ser substituídos por cravos pretos”, por “luto pela democracia”, disse André Ventura, para depois criticar o estado do SNS, os apoios dados pelo Governo aos ex-combatentes, as medidas “sem critério, absurdas” impostas ao comércio para combater a pandemia, e o “branqueamento da corrupção” pelos tribunais, em referência à decisão de Ivo Rosa na Operação Marquês e acusando ainda o Governo de querer “controlar cada vez mais a Justiça”. No fim, depois de anunciar que não ia estar presente no desfile organizado pela Associação 25 de Abril, o líder do Chega declarou: “25 de Abril sempre, mas precisamos de outra revolução em Portugal”.

Mariana Silva, do Partido Ecologista Os Verdes (PEV), um dos partidos contra o estado de emergência, congratulou-se exatamente por, neste 47.º aniversário da Revolução, ser finalmente possível “voltar a fazer a festa na rua” e por se “retomarem liberdades que vimos escaparem-se pelos dedos neste último ano”. Não admitindo “passos atrás”, a deputada desfiou ao longo do discurso as várias bandeiras do partido — escola pública, SNS, mobilidade, direitos dos trabalhadores — e frisou a importância do direito à justiça, “respondendo a todos os que justamente clamam pela criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado”.

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André Silva, que em junho vai deixar a AR e todos os cargos de direção no PAN, fez este domingo o seu último discurso como deputado e não poupou o Bloco Central fazendo uma analogia com o título de Mário Soares em 1972: como antes de Abril Salazar e Marcello Caetano traziam “Portugal Amordaçado”, hoje serão os grandes partidos no poder que trazem o país “capturado” por “interesses instalados” que “servem apenas algumas pessoas ou grupos”. “Portugal está capturado pela corrupção e pela falta de transparência, com instituições que vivem bem com o facto de apenas 1,3% das queixas sobre crimes de corrupção darem origem a condenações”, atacou o deputado do Partido Pessoas-Animais-Natureza. “Só durante o tempo desta curta intervenção, a corrupção leva-nos 205 mil euros”, partilhou ainda, sem explicar o raciocínio matemático. “Podemos agradecer a quem pouco ou nada tem feito para mudar esta realidade: ao Bloco Central.”

Em nome do CDS quem falou foi Pedro Morais Soares, o presidente da União das Freguesias de Cascais e Estoril que há assumiu há menos de um mês o mandato na AR em substituição de João Gonçalves Pereira e que começou logo com uma farpa a Ferro Rodrigues, que há um ano ainda acreditava que seria “completamente estúpido” ir “mascarado” para as cerimónias do 25 de Abril. “Se há um ano existisse quem se questionasse se viríamos para esta comemoração mascarados, hoje em dia só os negacionistas questionam a necessidade e utilidade das máscaras”, disse logo a abrir o centrista, para depois colocar em causa o plano do governo de António Costa para sair daquilo a que chamou “três pandemias” — sanitária, social e económica. “Os sucessivos planos e programas levam-nos a desconfiar do caminho. Não se vislumbra um planeamento, navega-se à vista, não sendo assim possível qualquer tipo de confiança”.

Alma Rivera, do PCP, acabou a citar Ary dos Santos — “Somos um rio que vai dar onde quiser” — mas também não fugiu ao tema do momento. Depois de recordar as conquistas de Abril, declarou que “a impunidade da corrupção, dos crimes económicos e financeiros, da banca, da utilização indevida do erário público, são afrontas à democracia” e lembrou que as gerações mais novas, “bisnetas dos antifascistas que deram a vida pela revolução”, também têm de fazer a sua parte. “Todos quantos não viveram o 25 de Abril de 1974 são chamados a defendê-lo.”

Pelo Bloco de Esquerda, a deputada e candidata à Câmara de Lisboa Beatriz Gomes Dias começou por “lembrar que as conquistas de Abril não são irreversíveis” e chamou a atenção para “o ressurgimento de forças populistas ou fascistas”, pedindo “a defesa intransigente da democracia”. Depois apontou à discriminação — de mulheres, pessoas negras e ciganas, migrantes, LGBTQI, idosos —, à pobreza e à corrupção, “que mina a democracia” e serve para alavancar e legitimar os extremismos. “A revolta que daí resulta é explorada por muitos para fazer crescer o seu negócio político”, através de “agendas políticas autoritárias” que usam a corrupção como “cavalo de Tróia”. A “falta de vergonha”, diz, num acrescento feito ao discurso escrito e em referência a André Ventura, chega ao facto de haver um “advogado que vem de um escritório que faz planeamento fiscal” e depois “clama contra a fuga ao fisco” no Parlamento.

Rui Rio, para além de André Silva, único líder partidário a discursar este domingo, falou num “divórcio” entre os cidadãos e o regime, que de alguma forma o Governo PS não tem tido “vontade política nem ambição” para reformar — e também colocou o dedo na ferida aberta do extremismo. “Se essas reformas não forem feitas não será seguramente com cordões sanitários, nem com artigos de opinião radicais que venceremos os extremismos emergentes”, avisou Rio, para depois atacar a “falta de eficácia do sistema de justiça”. “Se o atual sistema judicial não está capaz de se atualizar para responder aos justos anseios do povo português, então é evidente que a responsabilidade por o conseguir tem de passar pela esfera do poder político, que ao não o fazer passa a ser ele próprio responsável”, disse o líder do PSD.

Pelo PS, o investigador Alexandre Quintanilha admitiu que algumas das desigualdades com que o 25 de Abril prometia acabar ainda subsistem, mas preferiu concentrar-se no copo meio cheio — e puxar pelo papel do PS nesse processo. “O que conseguimos em 30 anos é gigantesco. Não está tudo feito, mas é justo que, ao continuarmos a lutar, celebremos o trabalho realizado”, disse, alertando para a crescente “fragilização das democracias” em todo o mundo, graças a “populismo e demagogia, fortíssimamente financiados”, e dando o exemplo dos Estados Unidos, que “escaparam por pouco”. “Ou nos ajudamos mutuamente ou naufragamos todos juntos”, rematou o deputado socialista, para depois dar a vez ao Presidente da República. Sobre os temas do dia — corrupção e transparência — nem uma palavra.