O hidroavião “Lusitânia”, de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, fez história em abril de 1922 ao ligar o Atlântico, mas a passagem dos “aviadores” por São Vicente permanece na memória daquela ilha cabo-verdiana, que prepara as comemorações do centenário.

“Foi o primeiro voo que Cabo Verde recebeu”, começou por contar à Lusa o engenheiro civil cabo-verdiano Carlos Monteiro, responsável em São Vicente pelas comemorações do centenário da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, preparadas em conjunto com a associação Lusitânia 100, fundada em Portugal em 2013 com a finalidade de divulgar aquela viagem histórica.

No final do dia 5 de abril de 1922, o hidroavião Fairey III D Mkll — o primeiro de três usados naquela histórica travessia – amarou na baía do Mindelo, ilha de São Vicente, depois de uma viagem de 10 horas e 43 minutos para percorrer 1.572 quilómetros, desde as Canárias, que tinham sido a primeira paragem após a saída de Belém, Lisboa, em 30 de março.

Aos comandos seguiam Gago Coutinho, experiente cartógrafo da Marinha, e Sacadura Cabral, piloto com larga experiência, conhecimentos complementares e tidos como decisivos para o sucesso da viagem.

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“Vendo esse circuito, os quilómetros que foram feitos – no total cerca de 8.300 -, a uma velocidade média de 143 quilómetros por hora, dá uma ideia das dificuldades”, recordou Carlos Monteiro.

Segundo os relatos da altura, os dois aviadores portugueses foram recebidos, triunfantes, pela população de São Vicente.

As autoridades municipais do Mindelo mandaram mesmo construir no local onde aportaram um padrão — destruído na década de 1980 e edificado outro cerca de dez anos depois — e a poucas dezenas de metros um obelisco numa praça, a que deram o nome de Gago Coutinho, o qual ficou conhecido como “O Pássaro”, ainda hoje ponto obrigatório de passagem de quem chega a São Vicente.

“Muita gente apareceu aqui para ver. Foi algo de extrema importância (…) Está na memória coletiva de São Vicente e de Cabo Verde em geral”, explicou, apontando ao local onde São Vicente entrou para a história da aviação.

Com o imponente obelisco de fundo, aquela área, junto à baía do Mindelo ficou mesmo conhecida como a “avenida dos aviadores”, tal foi a importância do feito dos dois, recebidos em 06 de abril de 1922 na Câmara Municipal da cidade, que se reuniu em sessão solene para os homenagear publicamente.

Em São Vicente, Gago Coutinho e Sacadura Cabral permaneceram mais de dez dias, em reparações do hidroavião “Lusitânia”. A etapa seguinte foi curta, até à Praia, ilha de Santiago, e aconteceu em 17 de abril, com 315 quilómetros percorridos em pouco mais de duas horas. Pouco mais do dobro do tempo das ligações aéreas atuais, praticamente cem anos depois.

“O avião esteve cá, aportou nesta zona, e ainda tentaram ir a Santo Antão [ilha vizinha de São Vicente]. Foram de barco analisar e chegaram à conclusão que não. Foram para a Praia”, recordou Carlos Monteiro que, aos 65 anos, já reformado, se tornou num entusiasta desta aventura. A mesma que conheceu pela primeira vez, na escola, sem então lhe passar pela cabeça que estaria na organização do centenário da viagem, quase seis décadas depois.

Não imaginava. De facto, na escola, estudei, como todos nós, e na altura já achava um feito interessante, um feito único, que acabou por levar Cabo Verde à história, ao pontapé de saída da aviação. E agora estou cá, deste lado, abraçando este projeto”, brincou.

O 99.º aniversário da chegada dos aviadores ao Mindelo já foi assinalado na cidade em 05 de abril – e na Praia em 17 de abril — com a colocação de uma coroa de flores com as cores das bandeiras dos quatro países ligados pela viagem (Portugal, Espanha, Cabo Verde e Brasil) junto ao padrão na baía.

Contudo, foi apenas o “pontapé de saída” para a preparação das comemorações do centenário, em abril de 2022.

“Estamos a congregar esforços para fazer algo conjunto, Portugal e Cabo Verde, logicamente envolvendo as Canárias, Espanha, e o Brasil (…) Em Cabo Verde queremos envolver a população, a ideia é desenvolver várias atividades, essencialmente ao nível do mar, dos desportos náuticos, alguns espetáculos e cultura”, explicou Carlos Monteiro, que foi diretor de aviação na vertente de abastecimento, pelo que sempre se teve o “bichinho” dos aviões.

No arquipélago, o programa das comemorações do centenário, no Mindelo e na Praia, foi batizado de “Cabo Verde: Os caminhos da História” e tem três vertentes: Educação, cultura e cidadania, envolvendo entidades públicas e privadas locais, incluindo conferências internacionais a dinamizar conjuntamente com as universidades cabo-verdianas.

Os dois aviadores deixaram a ilha de Santiago em 18 de abril de 1922 para a o troço mais longo da viagem. Levaram 11 horas e 21 minutos para percorrer os 1.682 quilómetros até amarar no arquipélago de São Pedro e São Paulo, um conjunto de pequenos ilhéus rochosos do estado brasileiro de Pernambuco, mas ainda a quase 1.000 quilómetros da costa continental.

Ali trocaram para o Fairey N.º 16, batizado de “Pátria”, mas este sofreu uma avaria no motor em 04 de maio, na viagem a caminho do arquipélago de Fernão de Noronha, e os aviadores foram forçados a amarar de emergência.

Já no terceiro hidroavião, o Fairey N.º 17, batizado “Santa Cruz”, Gago Coutinho e Sacadura Cabral chegaram ao Rio de Janeiro em 17 de junho de 1922, o destino final.

“Teve grande impacto não só em termos de Portugal, mas também no mundo e logicamente em Cabo Verde (…) Acabou por nos introduzir no seio da aviação civil, teve uma grande importância para Cabo Verde”, reconheceu Carlos Monteiro.ca