Neste novo episódio, o lendário músico português Manuel João Vieira, junta-se (virtualmente) a Cristina Sousa, Presidente da Direção Executiva da Abraço (Associação de Apoio a Pessoas com VIH/Sida), para olhar para uma figura mítica do estrelato americano, Liberace, e para os desafios que ainda são enfrentados pela população infetada com VIH.
Um talento inegável e uma figura exuberante
Nascido no Wisconsin a 16 de Maio de 1919, Wladziu Valentino Liberace foi um pianista popular nos anos 50, infame pela sua extravagância – reputação para a qual contribuíram caprichos como mantos de pele, candelabros em palco, uma piscina em forma de piano e uma reprodução do teto da capela sistina em casa.
“Ele tinha aquela ideia kitsch da cenografia, não só da cenografia em que vivia como a cenografia que criava para o seu público”, explica-nos Manuel João Vieira, impressionado com a forma como Liberace era capaz de aliar a sua técnica a uma performance total e interação com a audiência, que lhe valeram o cognome de “Mr Showmanship”, que atribuiu, aliás, a si próprio.
Destinado ao sucesso, Liberace foi considerado uma criança prodígio, tendo começado a tocar piano aos 3 anos de idade. Enquanto adolescente, tocou em bares, cinemas, orquestras sinfónicas e competições de música clássica um pouco por todo o centro-oeste americano. Aos 26 anos, teve sua primeira grande oportunidade de tocar em Las Vegas. Rapidamente os casinos perceberam que o seu sorriso atraía mulheres para os espetáculos, e os respetivos maridos para as salas de jogo, imediatamente declarando-o “bom para o negócio”.
Negado pela crítica, adorado pelo público
Não obstante todo o seu sucesso e os milhões de dólares que a sua carreira lhe trazia, não era apreciado pelos críticos, que tinham a tendência de ignorar a sua destreza técnica, acusando-o de optar pelas técnicas vistosas em detrimento da arte. A opção de ter espetáculos cheios de surpresas, guarda-roupa e truques para impressionar a audiência, aliado ao facto de incorporar música pop nas suas performances, tornou-o num pária junto dos puristas da música clássica. Sobre o seu estilo atrevido, Liberace comentava que tocava música clássica mas “sem as partes chatas”.
As audiências americanas não viam a sua improvisação como um problema. Depois de ignorar uma carreira na rádio (porque os espectadores “não o poderiam ver nas ondas de rádio”), Liberace apresentou o seu próprio programa de televisão – The Liberace Show – que chegou a ter 30 milhões de espectadores e recebia cerca de 10.000 cartas de fãs todas as semanas.
O programa chegou a passar no Reino Unido, e diz-se que Liberace foi a primeira pessoa gay que Elton John viu na televisão, tornando-se o seu herói e sendo uma grande influência na sua carreira.
O esconder da vida privada e o contágio pelo vírus
Apesar de homossexual e sexualmente promíscuo na sua vida privada, em público, Liberace negou, por várias vezes, a sua homossexualidade, anunciando (falsamente) noivados e chegando a processar (e ganhar) em tribunal quem o acusasse de o ser.
Em 1959, Liberace processou o Daily Mirror que, numa crítica ao seu espetáculo, usou o termo “fruit-flavored”, que nos Estados Unidos era calão para homossexualidade. Liberace processou-os rapidamente, recebendo mais de 8.000 dólares em compensação de danos e dizendo, sarcasticamente, aos repórteres que acompanharam o caso, que “chorou o caminho todo até ao banco”.
Apesar de ter tido várias relações de longa-duração, uma delas com o seu antigo motorista que o processou exigindo uma pensão de alimentos (um drama explorado no filme “Behind the Candelabra”), Liberace negou a sua preferência sexual até à sua morte em 1987.
Visto em contexto, Liberace cresceu numa família de classe média numa altura em que a homossexualidade ainda era um crime punido com 10 anos de prisão em alguns estados americanos. Segundo o seu biógrafo, todos os aspetos da sua persona, incluindo a sexualidade, eram construídos para agradar a um público o mais vasto possível, acreditando que a revelação da verdade seria certamente um suicídio da sua carreira. Uma década mais tarde, quando os Stonewall Riots começaram a verdadeira luta pelos direitos LGBT nos Estados Unidos, Liberace já estaria nos seus 50 anos e nunca demonstrou interesse em participar da luta, preferindo viver naquilo que muitos chamaram um “armário de vidro”.
A homofobia e a discriminação dificultaram, e continuam hoje a dificultar o combate ao vírus do VIH ou de outras doenças sexualmente transmissíveis.
Por um lado, as vítimas de estigma social tendem a sofrer de isolamento, baixa auto-estima, abuso de substâncias e comportamentos sexuais de risco, por outro o medo da discriminação leva-as a não procurar ajuda médica.
“As pessoas continuam a ter vergonha de admitir que vivem com a infeção mesmo junto das pessoas mais próximas. Continuam a ter medo de o dizer mesmo junto de um clínico.” Explica Cristina Sousa, presidente da Direção Executiva da Abraço. Este estigma faz com que as pessoas tenham medo “de saber o seu próprio diagnóstico”. “Isto coloca barreiras do início até ao fim”, explica.
Uma diferença abismal nos tratamentos
A notícia de que Liberace era seropositivo só foi conhecida após a sua morte, quando uma autópsia revelou que a causa do óbito fora uma pneumonia devido a complicações causadas por SIDA. O próprio músico apenas descobriu o seu estado serológico em Agosto de 1985, 18 meses antes de sucumbir à doença, optando por não tentar nenhum tipo de tratamento.
Em comparação com as opções disponíveis na altura (a primeira droga aprovada para o tratamento do VIH, só foi aprovada em 1987, o ano da morte de Liberace), existe hoje em dia uma “diferença abismal” nos tratamentos, segundo Cristina Sousa. “Começando com o facto de que assim que uma pessoa é diagnosticada, começa logo o tratamento. Só isso já faz a diferença toda.”
Além disso, o “cocktail de comprimidos” associado aos primeiros tratamentos do VIH está neste momento reduzido a um ou dois comprimidos por dia, permitindo um acesso fácil e cómodo ao tratamento. A toxicidade do tratamento reduziu também, tornando o tratamento mais fácil de suportar, com menos efeitos secundários, e mais “invisível” aos olhos do doente e de quem o rodeia.
Após a morte de Liberace, alguns antigos parceiros acusaram-no de os ter infetado com o vírus. Também essa situação seria facilmente evitada nos dias de hoje, através do tratamento. “É uma das mensagens mais importantes que tentamos passar”, explicou Cristina, referindo-se ao mantra “indetectável = intransmissível”, que transmite o facto de uma pessoa a fazer o tratamento para o VIH, atinge a carga vírica indetectável, não podendo assim transmitir a doença.
“Sim, poderá ter a sua vida plena a nível sexual e afetiva, sem ter medo de transmitir a doença para a outra pessoa. Nós costumamos dizer que, hoje em dia, devemos ter medo de quem não sabe que tem a doença.”
Para Cristina, esta mensagem é a mais importante a passar, de forma a mitigar os preconceitos que existem contra pessoas infetadas e, em simultâneo, promover o tratamento como a melhor forma de prevenção.
E se Liberace tivesse tido acesso à medicação preventiva que existe hoje em dia? Como teria passado as últimas décadas da sua carreira?
“Tentaria por um piano na lua ou em Marte!”, brincou Manuel João Vieira, quando lhe perguntámos o que imagina que Liberace teria feito se não tivesse sucumbido à doença. Soa como um exagero, mas no mundo de Liberace talvez não o fosse.
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