Em 2005, o realizador romeno Cristi Puiu, um dos principais nomes da chamada “nova vaga” do cinema da Roménia pós-comunismo, fez um filme chamado “A Morte do Sr. Lazarescu”, sobre um sexagenário – o Sr. Lazarescu do título – que se sente mal em casa, chama uma ambulância e é atirado de hospital em hospital ao longo de uma noite, enquanto o seu estado de saúde vai piorando. O filme usa o humor negro para fazer uma denúncia cerrada das deficiências do sistema de saúde da Roménia, que a julgar pelo documentário “Colectiv — Um Caso de Corrupção”, de Alexander Nanau, não só não melhorou desde então, como parece ter piorado ainda mais.
Distinguido com múltiplos prémios em todo o mundo, incluindo Melhor Documentário Europeu em 2020, e nomeado para os Óscares de Melhor Filme Internacional e Documentário de Longa-Metragem, “Colectiv — Um Caso de Corrupção”, parte de um incêndio que devastou a discoteca Colectiv, em Bucareste, em Outubro de 2015, durante um concerto de rock, e que matou 27 pessoas e feriu 180. Nos meses seguintes, morreram mais 37 devido a negligência nos hospitais em que estavam internadas. O escândalo foi tal, que o governo do Partido Social Democrata caiu, sendo substituído por um gabinete de tecnocratas enquanto não havia novas eleições legislativas.
[Veja o “trailer” de “Colectiv — Um Caso de Corrupção”:]
Nanau mostra como o jornalista Catalin Tolontan, do diário “Gazeta Sporturilor”, um popular título desportivo de Bucareste e o mais lido do país, e a sua equipa, investigaram meticulosamente o caso e levaram primeiro à demissão do ministro da Saúde, e depois de todo o governo, ao descobrirem que o desinfetante usado nos hospitais era diluído e adulterado pela empresa fornecedora, a Hexa Farma, diminuindo drasticamente a sua eficácia. Tolontan e os seus camaradas revelaram também a um país em choque, e depois revoltado, que esta situação já durava há anos e que muitas outras pessoas tinham morrido de infeções nos hospitais. Em vez de proteger e curar, o Estado romeno desprezava e matava os seus cidadãos.
Pouco a pouco, percebe-se que a dimensão do escândalo é imensa, e a teia de corrupção, fraude e desfalques complexa e omniabrangente. Os envolvidos incluem médicos, gestores de hospitais, enfermeiros. professores universitários, políticos e alguns dos mafiosos mais perigosos e poderosos da Roménia. O desleixo, a incompetência e a desumanidade nos hospitais atingem dimensões de filme de terror, ao ponto do novo e muito bem-intencionado ministro da Saúde do governo de tecnocratas, Vlad Voiculescu (que está em foco na segunda parte do filme) dizer numa reunião com os assessores que o sistema de saúde do país está de tal forma podre, que o problema só se resolveria “despedindo toda a gente”.
[Veja uma entrevista com o realizador Alexander Nanau:]
Rodado por Alexander Nanau como se se tratasse de um “thriller”, mas onde tudo o que se passa é real e tem consequências tangíveis, “Colectiv — Um Caso de Corrupção” é um documentário sobre a importância fulcral da existência de uma comunicação social livre e independente, com carta branca e meios para explorar e expor matérias que afetam a sociedade, e em especial em áreas tão essenciais e sensíveis como a da saúde. Nanau filma os jornalistas a fazerem aquilo que é a sua missão: duvidar do discurso oficial, pesquisar e aprofundar ao pormenor os casos, não terem medo nem se deixarem intimidar, e escrutinar, questionar e denunciar os poderes públicos, em nome do bem coletivo e do interesse comum.
O que, num país com as características da Roménia, pode acarretar perigos. No final deste arrasador documentário onde o espanto e a indignação andam sempre de braço dado, uma das jornalistas da “Gazeta Sporturilor” pertencente à equipa de investigação que fez estalar o escândalo, dá uma notícia perturbante aos seus camaradas. Foi contactada oficiosamente pela polícia secreta romena, e avisada que os jornalistas e as suas famílias estariam na mira de grupos mafiosos que foram prejudicados pelo seu trabalho.
[Veja uma cena do filme:]
“Colectiv — Um Caso de Corrupção” termina de forma chocante. Apesar de toda a comoção pública, mediática e institucional, e das manifestações de milhares de cidadãos nas ruas contra o governo e aclamando os jornalistas, o derrubado Partido Social Democrata consegue uma vitória inesperadamente esmagadora nas eleições legislativas e volta ao poder reforçado, surgindo logo a seguir sinais de que o sistema de corrupção se está a refazer no sector da saúde pública. O trabalho de um jornalista nunca está acabado, sobretudo em países como a Roménia, e os finais felizes ficam reservados para os filmes de ficção. (E que falta faz um Alexander Nanau em Portugal).