As propostas de PS e PSD sobre os temas de ocultação de riqueza que esta sexta-feira são apresentadas no parlamento vão bloquear a efetividade da própria lei, denuncia o ex-presidente da associação Transparência e Integridade.

Em entrevista, João Paulo Batalha, que liderou a associação cívica entre 2017 e 2020, considera que a exigência de uma notificação do Tribunal Constitucional – a entidade responsável pela análise e fiscalização das declarações apresentadas pelos titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos – para a criminalização da ocultação intencional deita por terra a possibilidade de fazer prova de eventuais situações ilícitas.

“É preocupante ver que o PS e PSD estão a pôr um bloqueio na eficácia da própria lei, porque criaram requisitos de prova que exigem uma notificação para provar a culpabilidade e essa notificação é boicotar a lei pela ‘porta do cavalo’. É pôr um requisito de prova impossível de cumprir, porque obrigaria a entidade de controlo a saber que as pessoas tiveram acréscimos patrimoniais antes de elas o declararem”, afirma.

Ato contínuo, o ativista sublinha que as propostas de socialistas e sociais-democratas “exigem a um político que seja apanhado para poder ser apanhado ou que se autodenuncie”. O facto de o enriquecimento ilícito ter ficado de fora da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC) apresentada pelo governo é, segundo o consultor, um sinal de “timidez” na reforma, mas vê na discussão no parlamento uma “oportunidade de colmatar essa falha”. Por outro lado, lamenta que as iniciativas dos dois maiores partidos sejam omissas relativamente à obtenção de vantagens futuras.

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“A utilidade do crime de ocultação de património é ter uma modalidade que permita fazer prova de enriquecimento injustificado sem ter de associá-lo a um pacto corrupto específico. É uma forma de captar irregularidades que acontecem à vista de todos, mas que não é possível provar em tribunal porque não se encontrou prova do pacto. É mais um exemplo de como as propostas de PS e PSD estão a boicotar a própria utilidade da existência deste crime”, nota.

Justiça. O que querem mudar os partidos no combate à corrupção

Na agenda desta sexta-feira estão cerca de duas dezenas de propostas dos partidos com assento parlamentar sobre a área da Justiça. Entre as medidas está a tributação dos acréscimos patrimoniais não declarados superiores a 50 salários mínimos (cerca de 33 mil euros), proposta por BE, PAN e Verdes, que, sustenta João Paulo Batalha, é essencial materializar, ao defender a recuperação de verbas como meio para travar a corrupção.

“Não podemos simplesmente andar a discutir penas de prisão sem trabalhar a recuperação dos ativos, seja pela via fiscal, seja pela recuperação dos ativos criminosos pela lei que já existe e que é muito mal aplicada no que toca a crimes de corrupção. A recuperação de ativos é fundamental como pilar de uma estratégia de combate à corrupção”, garante, acrescentando: “O património que seja provado ter sido ocultado não pode ficar nas mãos de quem ocultou”.

Sobre o interesse expresso pelos diversos partidos em tomar posição nesta matéria, o ex-presidente da associação Transparência e Integridade espera que “sirvam para o Parlamento tentar corrigir muitas das disfunções que estão na estratégia do governo” e para constituírem uma “alavanca” na melhoria da abordagem à corrupção.

“O facto de ter havido muitas propostas sobre vários temas dá ao Parlamento uma oportunidade para tratar maduramente estas questões, sem pressas legislativas, de maneira a tentar desenhar um sistema que faça sentido. Porque não temos essa garantia com a estratégia nacional contra a corrupção do governo”, conclui.

“A estratégia não foi suficientemente longe, de tal maneira que nós não podemos propriamente falar de uma estratégia anticorrupção. É um novo pacote legislativo de medidas contra a corrupção, algumas são seguramente úteis, mas não é uma estratégia. Não faz uma avaliação de desempenho, não define metas específicas mensuráveis e, portanto, não tem objetivos claros”, denuncia o ativista no combate à corrupção.

Antevendo uma “utilidade marginal”, João Paulo Batalha não hesita, porém, em considerar que as medidas do executivo não vão “alterar a dinâmica” e ficam aquém no reforço de meios e na remodelação da arquitetura das diferentes instituições. “O ponto de partida não é zero, mas é de desconhecimento e de falta de avaliação e de exigência. Infelizmente, não há razões para estar muito otimista que seja um momento de viragem”, frisa.

“Não precisamos de escrever leis contra a corrupção, já temos muitas. O que falta é eficácia no terreno e a estratégia é completamente omissa em relação a isso”, observa o consultor que se tornou uma das vozes mais ativas sobre o fenómeno da corrupção em Portugal nos últimos anos, resumindo: “Estamos perante um zero absoluto”.

Questionado sobre a prioridade dada pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, à prevenção em detrimento da repressão como caminho para uma maior eficácia no combate à corrupção, João Paulo Batalha reconhecer ser “mais útil e mais barato prevenir a corrupção do que ir atrás” após o crime, mas lamenta a desvalorização da vertente repressiva do sistema.

“A estratégia não dá sequer uma resposta útil na prevenção, mas convém não sermos ingénuos e percebermos que uma parte fundamental de um bom sistema de prevenção é uma repressão eficaz. Se as pessoas tiverem a expectativa de que vão ser apanhados e ficar sem os ativos, obviamente o incentivo para o crime diminui ou desaparece, portanto, um bom sistema repressivo a funcionar é fundamental para qualquer estratégia de prevenção”, explica.

Parlamento chumba proposta do Chega sobre enriquecimento injustificado

Quanto ao objetivo de evitar a criação de megaprocessos, entende que tal meta “não tem solução legislativa”. Embora reconheça que “há algum trabalho a fazer” nessa área ao nível da formação e especialização dos magistrados, teme que a imposição de mecanismos de gestão processual conduza a uma diminuição da eficácia do sistema judicial em obter condenações.

“Só temos megaprocessos porque temos megacorrupção. Podemos queixar-nos de que a Operação Marquês ou o processo BES são megaprocessos, mas, se cruzarmos esses processos, vemos que são vários tentáculos do mesmo ecossistema de corrupção, com muitos dos mesmos agentes. É necessário promover mais inteligência na gestão dos processos e saber onde conseguimos separar sem perder as conexões importantes para fazer prova”, resume.

O tema comum a mais projetos-lei – com variantes – tem como base a proposta apresentada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) para criar o crime de ocultação de riqueza, com PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN, PEV, IL e Chega a proporem alterações ao regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. No entanto, a maioria dos diplomas deverá baixar à discussão na especialidade sem votação, segundo adiantaram na quinta-feira fontes das diferentes bancadas parlamentares.

A ENCC chega ao Parlamento depois de em dezembro de 2019 o Conselho de Ministros ter aprovado a criação de um grupo de trabalho para definir uma “estratégia nacional, global e integrada de combate à corrupção”, na dependência direta da ministra da Justiça e envolvendo diferentes entidades e profissionais.

Até chegar à discussão no Parlamento, a ENCC percorreu um longo caminho, de ano e meio, que passou pela apresentação pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, do pacote inicial de medidas, que, após aprovação pelo governo, teve um período de consulta e discussão pública, com destaque para conferências na Universidade Católica, onde participaram personalidades ligadas à justiça.