Uma mesa, dois bancos, uma cadeira de baloiço, telas brancas suspensas no teto e um desenho de luzes que iluminam a cena e os atores de forma fantasmagórica e abissal. O cenário, aparentemente simples, ajuda a transportar o espetador para o universo de Samuel Beckett, um dos encenadores e dramaturgos mais influentes do século passado. Esta é a segunda vez que a encenadora Renata Portas trabalha sobre a obra, mas também o pensamento, do escritor irlandês.

“Há quatro ou cinco anos diz uma primeira abordagem sobre ele, numa instalação sonora com alguns dos seus poemas. Foi uma coisa informal e muito experimental num festival em Guimarães”, começa por contar em entrevista ao Observador. Anos mais tarde, é tempo de pegar novamente nesta espécie de sombra que a acompanha para todo o lado. “Ele é um autor genial, incomparável, uma espécie de sombra. Tal como trazemos Shakespeare ao ombro, também trazemos Beckett.”

Para este espetáculo, a diretora artística e co-fundadora da companhia de teatro Público Reservado, fundada em 2013, selecionou cinco peças breves do encenador irlandês – Ohio Impromptu, Rockaby, Play, Not I e — , “as mais radicais, exigentes e especiais”, numa tentativa de cumprir todas as alíneas que o dramaturgo deixou, algo que acabou por não acontecer.

“No início achei que ia cumprir tudo à letra, depois percebi que não, que nos podemos subtrair, mas não anularmo-nos completamente. Interessava-me ter também a minha própria visão sobre a proposta dele, Beckett também era encenador e certamente compreenderia isto”, explica, confessando identificar-se com a personalidade do autor: curiosa, criteriosa, sobrevivente e radical.

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Renata Portas nasceu no Brasil, trabalha e vive no Porto. Já encenou peças e textos de autores como Valère Novarina, Heiner Muller, Eurípides, Jean-Luc Lagarce, Pedro Eiras, Juan Mayorga, Franz Kafka, Luis Maffei ou Peter Handke Jean Anouilh

Em “Dramatículos”, Renata Portas usa voz gravada e vídeo, num espetáculo que começa “muito fiel” às diretrizes de Beckett, mas que ao longo do tempo é percetível uma “quebra da partitura”, num exercício livre e colaborativo, sendo que no final “existe uma insurreição”. “Tenho feito algumas experiências ao criar cenas, uma espécie de prologas intermédios, criados por mim em diálogo com os atores”, sublinha.

A ideia de tempo, memória, ruína, finitude e alívio estão presentes em tensões e transições, mas a encenadora gira quase sempre em torno do significado de linguagem. “No fundo, acho que somos todos bichos falantes, não somos humanos, somos máquinas de falar. O que nos distingue dos outros é essa capacidade de produzir som e pensamento. Falar é lembrar, é escrever, é ficcionar, é fazer um exercício de memória. Para mim, o teatro é isto: um exercício de memória.”

As palavras são protagonistas em palco, sendo muitas vezes repetidas, absorvidas e refletidas, e a intenção é que o espetador “feche os olhos e saia com vontade de conhecer melhor Beckett”. “Lia seis horas por dia durante o confinamento e isso salvava-me, abria-me espaços mentais. Tenho sempre esperança que aquilo que eu faço também tenha esse poder nas pessoas. Espero que as pessoas venham, fechem os olhos e saiam com vontade de saber quem é este homem. Se gostarem do teatro tanto melhor, mas não é obrigatório.

Uma pandemia que tornou a peça “mais especial”

Renata Portas iniciou o seu processo criativo, com o dramaturgista Hugo Miguel Santos, em novembro passado. A peça iria estrear em março, mas um novo confinamento adiou os planos e aguçou a necessidade de procurar alternativas. “Neste último confinamento, o próprio teatro não nos podia receber, mas não parámos, ensaiamos onde era possível, seguindo todas as normas. Ensaiamos em casa de um ator, num bar fechado e até num cais abandonado na Alfândega. No meio deste terror, todos os dias nos lembrávamos, até de uma forma egoísta, do privilégio que era podermos estar a pensar e a criar coisas novas. Aí percebemos que isto era especial.”

Sem ignorar a situação “muito problemática” do país, a encenadora admite que criou “uma bolha” para poder desenvolver o espetáculo e abstrair-se. “Na semana passada ficámos assustados com as novas medidas, mas felizmente conseguimos manter a peça e os horários. Hoje vivemos tempos difíceis, não sei se serão os mais difíceis da humanidade porque sou uma pessimista.”

Da cenografia ao desenho de luz, nada foi esquecido durante o processo criativo que se traduziu num trabalho “profundamente colaborativo”

Evocar a morte no seu trabalho artístico não é propriamente uma novidade para Renata Portas, mas em contexto pandémico esta temática torna-se ainda mais pertinente e desafiante. “Temos muito medo da morte, durante algum tempo achávamos que estávamos num mundo ocidental, muito privilegiado, em que a doença parecia que estava a desaparecer e a juventude era um primado. De repente, rebenta uma coisa [a pandemia] que mostra todas as nossas fraturas, desde a falta de dinheiro, à falta de justiça.

Para a encenadora, também a falta de tempo no mundo em que vivemos é um paralelismo com a obra de Beckett, que agora mostra em palco. “Parar é como estar em silêncio, obriga-nos a pensar e a estar connosco, e nós não suportamos estar connosco. Curiosamente as personagens de Beckett estão muito bem consigo próprias, às vezes nem gostam de si, mas estão muito bem consigo e fazem um exercício de rememoração contínuo, acho que todos nós precisamos de voltar a isso.”

Nesta nova criação, Renata Portas contou com uma equipa composta por elementos como St. James Park, que assina a música original e sonoplastia do espetáculo, Diogo M. Ferreira e o cineasta Edgar Pêra, que colaboraram na criação de dois objetos cénicos e fílmicos, ou o artista plástico Sérgio Leitão, que se estreia na cenografia. A interpretação fica a cargo de Cláudia Lázaro, Sílvia Santos, Pedro Manana e Pedro Damião. “Dramatículos” pode ser vista entre os dias 8 e 10 de julho, às 19h30, no Grande Auditório do Teatro Rivoli, no Porto. Os bilhetes custam 9 euros.