O coletivo de juízes que está a julgar Ricardo Salgado, no Campus de Justiça, em Lisboa, advertiu esta quinta-feira o Ministério Público de que não iriam analisar todos os documentos que constam no processo em que é acusado de três crimes de abuso de poder. No entanto, acabou por admitir ser mostrado em tribunal um manuscrito atribuído ao ex-líder do BES e que dá ordem de transferência de 55 milhões de euros em várias tranches. Um documento que o juiz quis certificar que pertence, de facto, ao arguido.
O inspetor tributário Paulo Silva — que durante quarta-feira participou na operação que levou à detenção do presidente do Benfica Luís Vieira — explicou que “a investigação apontou como este e outros [manuscritos] tendo sido elaborados pelo Ricado Salgado, não só pela escrita, como também dos elementos identificados que só podiam ter sido feitos por ele”. Nalguns destes manuscritos apreendidos estão inscritas as suas iniciais: RESS, assim como outras que alegadamente pertenciam a outros membros do Grupo Espírito Santo. Certo é que estes documentos não foram sujeitos a qualquer perícia por parte do Laboratório da Polícia Científica, da Polícia Judiciária (que nem participou na investigação).
O inspetor tributário que desde 2005, com a Operação Furação, tem comunicado ao Ministério Público centenas de operações suspeitas que já levaram à detenção de grandes empresários, bancários e até de um ex-primeiro ministro, José Sócrates — como no processo Marquês que deu origem a este em julgamento, recordou em tribunal que este manuscrito específico foi apreendido na Esfil na Suíça, em 2014, e veio depois para Portugal através de carta rogatória.
— Queremos saber se era um documento que estava arquivado ou se estava ali por cima, concretizou o juiz auxiliar Rui Coelho, depois da dúvida levantada pelo juiz presidente sobre como tinha sido encontrado este documento.
Paulo Silva exibiu o documento e foi dissecando o seu conteúdo. Há várias ordens de transferência que perfazem os 55 milhões de euros — embora, como reparou o juiz, o valor depois transferido tenha ascendido os 65 milhões euros, como se lia na acusação do processo da Operação Marquês em que o banqueiro era acusado de 21 crimes, entre os quais três de corrupção ativa. E que teria pagado mais de 65 milhões de euros em “luvas” ao antigo primeiro-ministro e aos ex-administradores da PT Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, como contrapartida por um alegado favorecimento do BES nas decisões tomadas pela empresa de telecomunicações.
— Então, mas há dinheiro a mais..., constatou o juiz, enquanto o advogado de Ricardo Salgado, Proença de Carvalho se congratulava na sua cadeira com a constatação, depois de ter chamado à atenção para o testemunho de Paulo Silva, que teria que ser o mais factual possível.
— É um erro. Há uma reprodução de 10 milhões, concluiu Paulo Silva.
Já à tarde, o juiz Rui Coelho lembrou que no documento estava também referido um valor de 10 milhões de euros assinalado com uma palavra à frente e se corresponderiam a essa diferença. Silva admitiu que colocaram essa hipóteses, mas que não conseguiram perceber que palavra se tratava. A defesa de Salgado questionou o facto de a investigação atribuir alguns documentos a Ricardo Salgado sem haver perícia forense.
Para o investigador este documento terá precedido um ficheiro Excel também apreendido e que foi criado em novembro de 2014 — altura em que Espírito Santos Enterprises muda de nome para Enterprises Management — por Jean-Luc Schneider, o operacional da ES Enterprises (que Salgado chegou a explicar ser o quadro suíço da Esfil – Espírito Santo Financière).
As empresas por onde circulava o dinheiro
Antes o inspetor já tinha explicado que ES Enterprises fora constituída em 1993 nas Ilhas Virgens Virgens Britânicas e que 2010 mudara de nome para ES International. Quando foi criada Ricardo Salgado era presidente do Conselho de Administração. Em 2004 passam a administradores desta empresa José Castela e o contabilista Francisco Machado da Cruz, ouvido terça-feira. Luke Schneider podia mexer nesta conta.
No entanto, notou, era feita “uma contabilidade com um peculiar registo contabilístico”, disse Paulo Silva. Assim, a maioria do dinheiro que ali entrava era registado como ativo e não passivo (onde deviam ser registadas todas as despesas da empresa. “Isto tem um significado: quando o dinheiro entrasse no lado da sociedade, esses empréstimos eram registados em termos negativos no lado ativo”, explicou. “Qual é o efeito: no final da conta, a conta está a zero”, disse. “Estas demonstrações financeiras são elaboradas por Schneider”, disse. “Sendo evidenciado um balancete assim, não era obrigado a apresentar contas”, afirmou.
Da conta desta sociedade, tida como o Saco Azul do BES, terão saído vários pagamentos para diversos funcionários do universo BES.
Uma outra sociedade cuja conta fazia circular milhares de euros era a Savoices, registada no Panamá, com conta aberta no Credit Suisse, na Suíça. Os beneficiários finais eram Ricardo Salgado e a mulher, Maria João, e tinha a particularidade de ter um gestor de conta externo: a Akoya, também falada na última sessão onde foi ouvido um dos seus acionistas, Michel Canals. Entre os sócios estavam o gestor de Ricardo Salgado, Nicolas Figueiredo (que segundo Paulo Silva chegou a ter uma relação com a filha de Salgado) , Hélder Bataglia, que geria uma outra sociedade que entrava nestes circuitos de dinheiro: a Green Emerald, e Álvaro Sobrinho.
Como vai ser o primeiro julgamento (a sério) de Ricardo Salgado?
Por isso, na sessão desta manhã, foi também exibido um documento a dar ordem para transferir 1,5 milhões de euros para a Savoices, assinado pelo Bataglia.
Outra transferência assinalada foi uma de oito milhões de euros, que o gestor Nicolas terá ordenado a partir de Portugal, a 7 de outubro de 2010. Uma transferência que foi intermediada por Henrique Granadeiro. “Havia urgência para começar a fazer aquisição e ações na EDP”, disse Paulo Silva.
Uma “prova plantada”?
Da parte da tarde foi a vez da defesa de Ricardo Salgado questionar o inspetor tributário. Francisco Proença de Carvalho tentou mostrar aos juízes que algumas das declarações de Paulo Silva não eram factuais e que não partiam do seu conhecimento dos documentos que analisou, mas de prova testemunhal ou mesmo de escutas (esta ainda não disponíveis neste processo que vai já para a terceira sessão).
Entre os documentos que usou para confrontar Silva, a defesa mostrou um que foi apreendido numa casa de Hélder Bataglia, líder da Escom, em Alfama, Lisboa. Esse documento estava no cofre, não estava certificado mas relatava um acordo de empréstimo entre ele e Ricardo Salgado, que teria sido elaborado em 1999, na sequência de um empréstimo de 2 milhões e euros ao empresário. Esse valor, segundo o acordo, seria pago em 2010 com um juro acrescido de 750 mil euros. De referir que um dos crimes de abuso de confiança de que Salgado vem acusado se refere a uma transferência desse valor, feita em 2011, da Green Emerald (Bataglia) para a Savoices (de Salgado e da mulher).
“Foi dos documentos mais suis generis que vi entre dois banqueiros”, disse Paulo Silva, afirmando ser claro que foi “uma prova plantada” uma vez que Bataglia estava ausente do país sabendo que tinha um mandado de detenção pendente há já um ano. O advogado não gostou da resposta e perguntou se tinha mandado investigar para o poder afirmar. O juiz acabou por lembrar que o documento em questão não foi considerado prova.
Ricardo Salgado não está presente no tribunal. O juiz lembrou novamente que está dispensado e que só precisa vir a tribunal se quiser prestar declarações, tal como o Observador já tinha noticiado.