E à terceira foi de vez. O julgamento do ex-líder do BES, Ricardo Salgado, arrancou esta terça-feira no Campus da Justiça em Lisboa, depois de dois adiamentos, mas o arranque não foi fácil. A primeira testemunha arrolada pelo Ministério Público não queria falar e só testemunhou depois de o juiz o lembrar que, se não colaborasse, poderia incorrer numa sanção penal. Já a segunda testemunha falou por videochamada, através de um telemóvel que teve que permanecer na mão do tradutor, sem que ninguém conseguisse sequer ver a sua cara.

Francisco Machado da Cruz, que foi contabilista da Espírito Santo Internacional (ESI), foi a primeira testemunha do processo saído da Operação Marquês, e que leva Salgado a responder por três crimes de abuso de confiança — em vez dos 21 de que foi acusado ao lado do ex-primeiro-ministro José Sócrates. Mas antes de chegar ao tribunal, esta tarde, o seu advogado já tinha mandado um requerimento ao tribunal para que ele fosse dispensado de falar, correndo o risco de se incriminar — porque ele próprio é arguido no processo do Universo BES.

Sentado perante o coletivo de juízes, Machado da Cruz começou por pedir para tirar a máscara para poder exprimir-se melhor, mas o juiz presidente Francisco Henriques recusou e recomendou-lhe que projetasse a voz. Sempre a medo, começou por identificar-se como um desempregado de 62 anos, licenciado em gestão, que foi responsável de contabilidade da Espírito Santo Internacional 2004 a 2014. Repetia recear que as suas respostas neste caso o auto-incriminassem.

“Eu contei a verdade, só a verdade, ao Ministério Público, à Comissão Parlamentar de Inquérito e na CMVM”, justificou.

Nalgumas dessas instâncias, Machado da Cruz disse que Salgado era quem mandava e que foi por sua ordem que ocultou dívida na holding do Grupo Espírito Santo (GES) desde 2008. Ainda assim, diz, “por surpresa minha fui acusado no processo Espírito Santo”.

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“Só o facto de eu conhecer o Dr. Ricardo Salgado pode eventualmente ser aproveitado pelo MP para me incriminar de novo”, afirmou, perante um coletivo incrédulo.

O advogado Miguel Cordevil de Matos também insistiu para que o cliente não falasse, mas o juiz auxiliar, Rui Coelho, acabou por ser mais assertivo. “As perguntas vão ser feitas à mesma, se recusar a responder poderá em sede superior ser avaliada essa recusa. Há sanções penais para essa recusa”, advertiu.

Contabilista do GES, Machado da Cruz, será ouvido pela Comissão de Inquérito

As poucas perguntas do Ministério Público cingiram-se a Hélder Bataglia, sócio da Escom, em Angola, e cuja conta recebeu e transferiu milhões para Ricardo Salgado. Machado da Cruz contou que conheceu “o Hélder” em Lisboa ainda nos anos 90 e que este acabaria por convidá-lo para colaborar com ele. Anualmente o economista deslocava-se a Luanda para fechar as contas da empresa. Depois acabou por trabalhar para a Suíça, para uma empresa do Grupo Espírito Santo, desconhecendo a atividade de Bataglia além da Escom.

A inquirição do comissaire aux comptes da ESI terminaria ao fim de cerca de 15 minutos. “Afinal não foi difícil”, disse-lhe o juiz.

Machado da Cruz no parlamento

Mais difícil foi perceber o intérprete italiano da testemunha que se seguiu. Michel Canals, já reformado, foi gestor de fortunas na Suíça, arguido no processo Monte Branco e testemunha em quase todos os grandes processos de crimes económicos que correm nos tribunais portugueses. Por videochamada através de um telemóvel, respondeu às perguntas do Ministério Público e da defesa de Salgado em italiano, traduzido depois pelo intérprete que segurava o telefone na mão. E que, na verdade, era o único na sala a conseguir vê-lo.

“Isso viola o que aprendemos nas aulas de Direito, de termos que interpretar a postura corporal da testemunhas”, queixou-se o advogado de Salgado, Francisco Pronça de Carvalho, depois de uma sugestão frustrada de projetar a imagem do telemóvel na televisão existente na sala.

Quando lhe perguntaram se conhecia Ricardo Salgado, Canals disparou uma resposta com um ponto de interrogação: “Quem é que não conhece o Ricardo Salgado em Portugal?”. Explicou que ele era um cliente da Akoya, a empresa que geria na Suíça, mas era o seu sócio o responsável pela sua conta.

A Akoya, acrescentou, era uma das mais de 2 mil sociedades de gestão financeira que existem naquele país. “Eu era um dos 5/6 partners”, disse. Os outros eram: Helder Bataglia (22,5%), Álvaro Sobrinho (22,5%), Michel Canals (20%), Nicolas Figueiredo (15%), José Pinto (15%) e a advogada Ana Bruno (5%).

Akoya, a financeira investigada no processo Monte Branco vai ser dissolvida

Canals disse ainda que Salgado era cliente através da empresa Savoices, cujos movimentos foram investigados na Operação Marquês.

— A Savoices era uma empresa de gestão de fundos do Ricardo Salgado, disse Canals

Além de entrar e sair dinheiro havia outra atividade?, perguntou o procurador do Ministério Público, Vítor Pinto

Não vejo que outras atividades podiam haver numa sociedade de gestão patrimonial, respondeu.

Sobre um documento que o tribunal mostrou de uma transferência de 1,5 milhões de euros a favor da Savoices, assinado por Bataglia, Canals explicou que a Akoya não era um banco, não podia fazer pagamentos, tinha que se dirigir a um banco para fazer o pagamento. Essa ordem de pagamento teria sido dada em Lisboa primeiro por fax, e depois enviada por correio ou entregue pessoalmente a Bataglia e a ele. Não se recorda se foi o caso, até porque esteve com o Bataglia “umas 200 vezes”.

Sempre que era dada uma ordem de transferência, era primeiro analisado se havia capital ou se era preciso recorrer a alguma aplicação financeira. Depois o próprio banco pedia uma confirmação, muitas vezes basta fazê-lo por telefone.

Julgamento foi adiado duas vezes

O julgamento do ex-líder do BES, Ricardo Salgado foi adiado duas vezes em junho. Na primeira, porque a defesa não tinha ainda entregado a contestação, na segunda porque o Ministério Público pediu tempo para olhar para a contestação à acusação entretanto entregue, que tinha mais de 300 páginas. Em ambos os casos houve deslocação ao tribunal.

O Ministério Público acredita que a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o chamado “saco azul do BES”, com várias contas bancárias no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça, era “controlada pelo arguido Ricardo Salgado e utilizada pelo mesmo para movimentar fundos e realizar pagamentos sem que a sua origem, destino e justificação fosse revelada”. Domínio que a defesa de Salgado quer contestar.

Operação Marquês. Como se defende Ricardo Salgado dos três crimes de abuso de confiança?

Em tribunal Salgado terá que justificar porque foram transferidos 4 milhões de euros para a Savoices, uma outra empresa offshore da qual o ex-líder do BES era o beneficiário, os motivos das várias transferências para o ex-líder da PT Henrique Granadeiro (que terá transferido depois 4 milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher) e as razões pelas quais 2.750 mil euros saíram do BES Angola, passaram por uma conta do empresário Hélder Bataglia, e acabaram na Savoices do próprio Ricardo Salgado.

O julgamento prossegue na quinta-feira com o testemunho do inspetor tributário, Paulo Silva. Há sessões marcadas para julho e dias reservados para setembro num julgamento que demorará mais do que o de Armando Vara, que se resumiu a três sessões e cuja sentença será conhecida já na próxima semana.

Até agora Salgado ainda não compareceu no tribunal, com a defesa a lembrar a sua idade e a pandemia de Covid-19. Mas o tribunal já fez saber que se quiser prestar declarações, terá que o fazer presencialmente.

Como vai ser o primeiro julgamento (a sério) de Ricardo Salgado?