O testamento digital e a criação da tarifa social de Internet são dois dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no online que constam na Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, que entra em vigor na sexta-feira.

Censura ou combate à desinformação? As polémicas à volta da Carta dos Direitos Humanos na Era Digital

Publicada em Diário da República em 17 de maio, o diploma tem 21 artigos — entre os quais o polémico 6.º, que respeita ao direito à proteção contra a desinformação —, onde se inclui o direito ao testamento digital.

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De acordo com a lei, “todas as pessoas podem manifestar antecipadamente a sua vontade no que concerne à disposição dos seus conteúdos e dados pessoais, designadamente os constantes dos seus perfis e contas pessoais em plataformas digitais, nos termos das condições contratuais de prestação do serviço e da legislação aplicável, inclusive quanto à capacidade testamentária”. A supressão póstuma de perfis pessoais em redes sociais ou similares por herdeiros “não pode ter lugar se o titular do direito tiver deixado indicação em contrário junto dos responsáveis do serviço“, refere a lei.

No que respeita ao direito de acesso ao ambiente digital, a legislação consagra que “todos, independentemente da ascendência, género, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, têm o direito de livre acesso à Internet”.

Com o objetivo de assegurar um ambiente digital “que fomente e defenda os direitos humanos, compete ao Estado promover”, entre outros, “a criação de uma tarifa social de acesso a serviços de Internet aplicável a clientes finais economicamente vulneráveis“, bem como “o uso autónomo e responsável da Internet e o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação” e “a eliminação de barreiras no acesso à Internet por pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo, designadamente através da definição e execução de programas com esse fim”.

A redução e eliminação das assimetrias regionais e locais em termos de conectividade, a existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos e a definição e execução “de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço” são outras das medidas que cabe ao Estado promover.

No que respeita à liberdade de expressão e criação em ambiente digital, o diploma refere que “todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura, sem prejuízo do disposto na lei relativamente a condutas ilícitas“.

Além disso, “todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição”.

É ainda referido que a criação de obras literárias, científicas ou artísticas originais, como também as equiparadas a originais e as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas e videogramas e os organismos de radiodifusão, “gozam de especial proteção contra a violação do disposto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos“, em ambiente digital.

A Carta proíbe a interrupção “intencional de acesso à Internet, seja parcial ou total, ou a limitação da disseminação de informação ou de outros conteúdos, salvo nos casos previstos na lei”. Os direitos de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital; o direito à privacidade em ambiente digital; o uso da inteligência artificial e de robôs; e o direito à neutralidade da Internet são outros dos temas que constam do diploma.

A lei também prevê o direito ao esquecimento, em que todos podem obter do Estado “apoio no exercício do direito ao apagamento de dados pessoais que lhes digam respeito, nos termos e nas condições estabelecidas na legislação europeia e nacional aplicáveis“.

O direito ao esquecimento pode ser exercido a título póstumo por qualquer herdeiro do titular do direito, salvo quando este tenha feito uma determinação em sentido contrário. Também legisla os direitos nas plataformas digitais, bem como a cibersegurança e a proteção contra a geolocalização abusiva.

Direitos digitais face à Administração Pública é outra das matérias que engloba o diploma, em que é reconhecida a assistência pessoal no caso de procedimentos exclusivamente digitais e a que dados prestados a um serviço sejam partilhados com outro, nos casos legalmente previstos, por exemplo.

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Um dos artigos diz respeito ao direito das crianças, em que é referido que estas têm direito “a proteção especial e aos cuidados necessários ao seu bem-estar e segurança no ciberespaço” e que “podem exprimir livremente a sua opinião e têm a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, em função da sua idade e maturidade”.

CDS e IL querem revogar artigo polémico da Carta na Era Digital e PS propõe alteração

CDS-PP e a Iniciativa Liberal (IL) apresentaram projetos de lei para revogar o polémico artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, que entra em vigor na sexta-feira, enquanto o PS propõe uma alteração.

O artigo 6.º respeita ao direito à proteção contra a desinformação, onde se refere que o Estado “assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”.

Desinformação, refere o artigo, é considerada “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”.

Mais concretamente, “informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios”, lê-se no documento. Os erros na comunicação de informações, sátiras ou paródias não são abrangidas pelo disposto no artigo.

“Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social [ERC] queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo”, sendo aplicáveis os meios de ação relativamente aos procedimentos de queixa e deliberação e ao regime sancionatório. “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”, refere ainda o artigo.

O CDS-PP apresentou o Projeto de Lei n.º 888/XIV-2.ª, em que propõe a eliminação da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era digital “a criação do conceito de desinformação e a previsão de apoios e incentivos estatais à atribuição de selos de qualidade a órgãos de comunicação social”, ou seja, a revogação do dito artigo.

Na exposição de motivos, o CDS-PP refere que “a abordagem destas matérias deve garantir o respeito e equilíbrio entre os diferentes direitos e princípios fundamentais, como a liberdade de expressão, o pluralismo, a diversidade e a fiabilidade da informação”, pelo que considera que “o Estado não deve poder intervir numa veste certificatória, separando os bons dos maus meios de comunicação social, os sérios dos que o não são, praticando uma espécie de censura que se distingue da que historicamente” é conhecida “por ser feita a posteriori, mas que dela se aproxima por também estar a cargo do Estado”.

Também a Iniciativa Liberal segue a mesa linha, considerando que o diploma “inclui uma disposição aberrante que promove ativamente mecanismos censórios” no artigo 6.º, lê-se no seu Projeto de Lei n.º 890/XIV/2.ª.

O artigo em causa “abre o caminho para a censura sistematizada de conteúdos políticos legítimos, agride princípios básicos da democracia liberal, e destrata direitos, liberdades e garantias reconhecidos pela nossa Constituição a todos os indivíduos”, considera o deputado João Cotrim Figueiredo, salientando que este “confere a uma rede de verificadores licenciados, reconhecidos e autorizados pelo Estado o poder não sujeito a escrutínio democrático de julgar a veracidade dos conteúdos online, o que incluirá conteúdos políticos”.

Sendo que o dito artigo se afigura “como o primeiro passo para a criação de um ‘Ministério da Verdade’ capaz de controlar a opinião que os cidadãos expressam na Internet”, este “não pode passar”, refere a Iniciativa Liberal, pelo que “deve ser revogado”.

Já o PS, no Projeto de Lei n.º 884/XIV/2.ª, considera que o número seis do artigo 6.º (sobre o Estado apoiar a criação de estruturas de verificação de atos e o incentivo à atribuição de selos de qualidade) “carece de regulamentação”.

Nesse sentido, a proposta socialista “densifica o disposto no n.º 6 do artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, explicitando os termos em que pode ocorrer apoio do Estado às entidades referidas nesse preceito”.

De acordo com a proposta do PS, “as estruturas dedicadas à verificação de factos, criadas por entidades de comunicação social registadas na Entidade Reguladora da Comunicação Social, podem receber apoio do Estado, desde que ocorra exercício efetivo, a título exclusivo ou predominante, de atividades dirigidas à prossecução dos fins que justificaram a sua criação e a mesma obedeça ao Código de Princípios de redes Internacionais de Verificação de Factos”.

E o Estado “não pode interferir na atividade das entidades referidas no número anterior, designadamente na definição da sua organização interna, metodologias de verificação e formas de publicitação dos resultados do trabalho realizado”, salienta o Projeto de Lei socialista.

Sobre os requisitos da concessão de apoio, o PS propõe que “só pode ser concedido apoio às entidades referidas no artigo anterior quando: as entidades se encontrem regularmente constituídas, regendo-se por estatutos elaborados em conformidade com a lei; exerçam atividade efetiva há pelo menos três anos; disponham de pessoal, infraestruturas, instalações e equipamentos, próprios, contratados ou voluntários, necessários para assegurar a prossecução dos seus fins e para as atividades que se propõem realizar; tenham uma página na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os estudos e documentos produzidos, a ficha técnica dos editores e colaboradores e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

Sobre os selos de qualidade, “o Estado incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades criadas por pessoas coletivas de utilidade pública do setor cultural que se dediquem de forma exclusiva ou predominante à aplicação do disposto no n. º 6 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2021, de 17 de maio”.