O espólio de Almada Negreiros e Sarah Affonso vai ficar à guarda da Universidade Nova de Lisboa, onde será conservado e estudado, no âmbito de um protocolo assinado entre a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e as netas dos artistas.
“O espólio de Almada Negreiros e de Sarah Affonso foi hoje colocado à guarda da NOVA FCSH, onde será conservado, inventariado, digitalizado, organizado e estudado por investigadores do Instituto de História da Arte (IHA) e do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT)”, lê-se num comunicado divulgado na quarta-feira, ao final da tarde, no site oficial da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova (FCSH NOVA).
O protocolo, que foi assinado pelo diretor da faculdade, Francisco Caramelo, e as netas dos artistas, Rita e Catarina, prevê a “constituição do Centro de Estudos e Documentação Almada Negreiros e Sarah Affonso, que funcionará na antiga capela do colégio Almada Negreiros, no campus de Campolide”, da Universidade Nova de Lisboa.
De acordo com a instituição, “do trabalho e estudo sobre o espólio poderão resultar múltiplos projetos de investigação, exposições e até edições, cuja realização ficará a cargo de um grupo de investigadores que responderá a uma comissão executiva e a uma comissão científica, com representantes da Nova FCSH e da família de Almada Negreiros e Sarah Affonso”.
Almada Negreiros e Sarah Affonso são dois ‘nomes-chave’ da arte portuguesa do século XX, e do modernismo, em particular, como indica a investigação mais recente, nomeadamente sobre a obra da pintora, durante anos deixada em segundo plano.
Sarah Affonso nasceu em 1899, em Lisboa, cidade onde morreu, em 1983. Estudou pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, onde foi discípula de Columbano Bordalo Pinheiro, e um dos seus derradeiros alunos. Da formação, manteve o gosto pelo retrato e pela encenação de uma certa intimidade. Da infância vivida em Viana do Castelo, ficou igualmente a inspiração na iconografia popular, que aplicou na pintura, no desenho, no bordado e na cerâmica.
A sua obra está marcada ainda pela presença em Paris, para onde partiu em 1924, e frequentou a Académie de la Grande Chaumière. Aqui viria a expor, mais tarde, numa segunda permanência na capital francesa, em 1928 e 1929, no Salon d’Automne, com boa receção da crítica.
Almada Negreiros nasceu a 7 de abril de 1893, em S. Tomé e Príncipe, e morreu a 15 de junho de 1970, em Lisboa, deixando uma vasta obra de pintura, desenho, teatro, dança, romance, poesia, conto, ensaio, livros manuscritos ilustrados, narrativa gráfica, pintura mural e artes gráficas, cuja produção se estendeu ao longo de mais de meio século.
Nome da Geração de Orpheu, seguiu estudos de Pintura em Paris, em 1919 e 1920, onde trabalhou como bailarino. Viveu em Espanha, no final da década de 1920. “O Manifesto anti-Dantas e por extenso” tornou-o num dos principais elementos da vanguarda do modernismo português. Em 1917, participou assinou o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”, com Santa-Rita Pintor.
Na produção literária destacam-se o romance “Nome de Guerra”, os contos “A Engomadeira” e “O Cágado”, o teatro de “Pierrot e Arlequim”, a poesia de “A Cena do Ódio” e os textos de “A Invenção do Dia Claro” (“ensaios para a iniciação de portugueses na revelação da pintura”), “K4, O Quadrado Azul” e “Elogio da Ingenuidade ou as Desventuras da Esperteza Saloia”. A sua participação, em 1969, no programa “Zip-Zip”, da RTP, deu-lhe grande popularidade.
Sarah Affonso e Almada Negreiros casaram-se 1934. Nos últimos anos, os dois artistas foram alvo de importantes exposições, nomeadamente na Fundação Calouste Gulbenkian e no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa.
Em 2017, a Gulbenkian apresentou “José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno”, antológica com curadoria da historiadora de arte Mariana Pinto dos Santos, investigadora do Instituto de História de Arte da FCSH, com a conservadora do Museu Calouste Gulbenkian Ana Vasconcelos.
Em 2019, foi a vez de a Gulbenkian apresentar a mostra temática “Sarah Affonso e a Arte Popular do Minho”, um encontro entre a pintora a região, também com curadoria de Ana Vasconcelos.
Ainda em 2019, assinalando os 120 anos do nascimento da pintora, o Museu Nacional de Arte Contemporânea — Museu do Chiado, em Lisboa, manteve a exposição “Sarah Affonso. Os dias das pequenas coisas”, com curadoria de Maria de Aires Silveira e Emília Ferreira, que deu mais tarde origem à publicação do livro homónimo, numa edição da Tinta-da-China, em parceria com o museu, um grande álbum ilustrado sobre a vida e a obra de “uma das mais notáveis e desconhecidas modernistas portuguesas”, ilustrado com os seus trabalhos, uma fotobiografia e ensaios de vários especialistas.
Ilustradora, na imprensa periódica e para diversos livros de escritores, como Fernanda de Castro, Sarah Affonso manteve ao longo de décadas atividade como pintora, com particular destaque para o retrato. Foi reconhecida pelos pares e pela crítica, distinguida com o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso, em 1944, e organizou várias exposições individuais, nas décadas de 1920 e 1930.
Contudo, em 1978, cinco anos antes da sua morte, a crítica Sílvia Chicó, escrevendo para o catálogo de uma mostra da artista, lamentava que a sua obra fosse, “em grande parte, ignorada pelo público”.
“Foram poucas as mulheres que souberam transpor em Portugal as barreiras sociais à [sua] afirmação como artistas, nas primeiras décadas do século XX”, destacava a Gulbenkian, em 2019.
Sarah Affonso “foi a primeira mulher a frequentar, contra todas as convenções, a Brasileira, no Chiado, o que ilustra não só os preconceitos do seu tempo, mas também o espírito independente com que os encarava. Se, por um lado, o tempo em que viveu condicionou o seu percurso artístico, [também usou] as suas vivências e memórias, como matéria-prima da sua arte. Foi a partir da sua própria vida — da infância e dos laços de amizade e amor — que construiu uma linguagem e uma temática próprias”, lê-se no catálogo da fundação.
No ano passado, o Museu Nacional de Arte Antiga revelou também o “Estudo em fio dos Painéis de S. Vicente”, feito por Almada, um enorme painel de 1950, pela primeira vez exposto em público, depois de restaurado no Laboratório José de Figueiredo.
Este ano, a obra de Sarah Affonso está presente na exposição “Tudo o que eu quero”, na Gulbenkian, dedicada a artistas portuguesas desde o início do século XX.
A obra de Almada Negreiros está também a ser estudada por investigadores liderados pelo Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora, nomeadamente a sua obra mural, que inclui “cinco núcleos de pintura” em Lisboa, realizados entre 1938 e 1956, na antiga sede do Diário de Notícias, na Gare Marítima de Alcântara e na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos.