Pedro Tamen, que além de escrever poesia e prosa ao longo de mais de cinco décadas também traduziu para português dezenas de autores de dimensão mundial, morreu esta quinta-feira em Setúbal, onde estava hospitalizado, disse à agência Lusa fonte próxima da família. Tinha 86 anos.

As cerimónias fúnebres estão marcadas para sábado numa capela em Palmela, segundo a agência Lusa, seguindo o corpo para um crematório da Quinta do Conde. Só estarão presentes familiares, devido às restrições no contexto da pandemia, disse a filha do escritor à Lusa. Teresa Tamen acrescentou que “será depois rezada uma missa do sétima dia”.

Além da vida literária, Pedro Tamen foi administrador da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1975 e 2000, onde teve o pelouro das belas-artes. Estreou-se em 1956 com a obra Poema para Todos os Dias, em edição de autor, tendo publicado quase uma dezena de títulos de poesia, entre eles O Livro do Sapateiro, que lhe valeu em 2010 o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e em 2011 o Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas.

“À margem de escolas e movimentos, a sua poesia afirma-se como das mais cultas e inovadoras surgidas a partir da segunda metade dos anos 1950”, regista o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. “O pendor religioso dos dois primeiros livros desvaneceu-se progressivamente, em favor de uma óbvia ambiguidade discursiva, por vezes sarcástica, de tónica anti-convencional e rigor ático [elegante].”

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“Vivi sempre empenhado, felizmente não empenhado em casas de penhores”

Pedro Tamen também escreveu teatro e foi tradutor de autores como Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Luis Sepúlveda, Camilo José Cela, Reinaldo Arenas, Marcel Proust e Gustave Flaubert, entre outros. Os Manifestos do Surrealismo, de André Breton; Situações X: Política e Autobiografia, de Jean-Paul Sartre; e Patty Diphusa e Outros Textos, de Pedro Almodóvar; são outras das traduções assinadas ao longo das décadas por Pedro Tamen.

Via a tradução como um vício e assim afirmou numa entrevista em 2003 à RTP. No caso da obra de Marcel Proust, o vício tornou-se um “fenómeno de possessão”, disse, referindo-se à tradução integral de Em Busca do Tempo Perdido. “Toda a minha vida é uma história de sucessivos empenhamentos, vivi sempre empenhado em qualquer coisa”, disse naquela entrevista, conduzida por Ana Sousa Dias. “Vivi sempre empenhado, felizmente não empenhado em casas de penhores. Também não andei muito longe, em certas alturas. A minha vida foi sempre vivida um pouco em epopeia, em coisas que me interessam visceralmente e a que me dou por inteiro.”

Ao explicar como escrevia poesia, disse na entrevista: “Há um trabalho de sapa que se passa ao nível do inconsciente e que tem que ver com os pequenos acontecimentos da vida, que vou anotando sem querer. Chega um momento em que se dá uma espécie de reação química, que faz com que aquilo tudo entre em ebulição e queira forçosamente concretizar-se em palavras escritas. Nessa altura, tenho mesmo que escrever. Acontecia muitas vezes ao longo da minha vida profissional, a meio de um telefonema, ‘desculpe, tenho de desligar’.”

Marcelo: “Foi também um amigo que hoje perdi”

Numa mensagem de condolências à família, publicada nesta quinta-feira, o Presidente da República escreveu: “Foi também um amigo que hoje perdi”. Recordou-o como “figura ativíssima da nossa vida cultural e cívica” e destacou o percurso de Tamen “como militante de grupos católicos de orientação conciliar, como cineclubista, como crítico literário, como diretor e colaborador de jornais e revistas, como editor na Moraes e responsável da fundamental coleção Círculo de Poesia, como membro do conselho de administração da Fundação Gulbenkian, como dirigente de associações de escritores, e claro, como tradutor e poeta”.

Marcelo Rebelo de Sousa deixou ainda uma apreciação à obra poética do autor: “À sua poesia, de temática cristã no início, e depois progressivamente surrealizante, lúdica, hermética, sempre inventiva, tão depressa erudita como ligada ao quotidiano, ao amor, à artes plásticas, foram atribuídas diversas distinções que o consagraram como um autor singularíssimo, respeitado e admirado pela crítica e pelos seus pares.”

Também a meio da tarde de quinta-feira a ministra da Cultura, Graça Fonseca, lamentou a morte de Tamen, que classificou como “figura maior da literatura portuguesa”. Numa mensagem publicada na rede social Twitter, a ministra salientou que Tamen “construiu uma obra poética extraordinária, com um domínio magistral da língua portuguesa e das suas sonoridades”.

Na mesma rede social, o editor e escritor Francisco José Viegas recordou a “ironia, inteligência, sabedoria, ironia outra vez, humildade, sabedoria outra vez” e também a “erudição e amor” do autor agora desaparecido. “Obrigado por tudo, Pedro”, acrescentou Francisco José Viegas. A editora Tinta-da-China assinalou que Pedro Tamen fez a “superior tradução” de Jacques, o Fatalista, de Diderot.

A Fundação Calouste Gulbenkian lamentou a morte de Pedro Tamen e classificou-o como “um dos mais notáveis vultos da poesia portuguesa”. “A sua dedicação foi inexcedível e lembrá-lo-emos sempre”, referiu a presidente da Gulbenkian, Isabel Mota, numa nota publicada no site.

“Em Pedro Tamen encontramos um poeta com grande maturidade artística, com excecional domínio da língua e uma vocação temática universalista, sendo hoje um símbolo vivo da grande qualidade da poesia contemporânea”, lê-se numa nota publicada no site do Centro Nacional de Cultura, de que Tamen foi membro. “Homenageamos a memória de Pedro Tamen e todo o seu apoio, enviando sentidas condolências à família, em especial à sua filha Teresa.”

A Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva prestou homenagem a uma “figura de relevo da Cultura Portuguesa, integrou o Conselho de Administração (1994-2008) e do Conselho de Patronos (1994-2014) da Fundação Arpad Szenes — Vieira da Silva durante vários anos, com enorme entusiasmo”.

Já o primeiro-ministro lembrou Pedro Tamen como autor de “uma obra poética singular e de grande qualidade” e um “tradutor notável”, que “afrontou o conservadorismo do Portugal dos anos 60”. “Foi uma figura central na vida cultural portuguesa. Fez parte da prodigiosa geração de intelectuais de ‘O Tempo e o Modo’, que renovou o ambiente cultural e afrontou o conservadorismo do Portugal dos anos 60”, escreveu António Costa, numa publicação na rede social ‘Twitter’. Recordando que Pedro Tamen foi administrador da Fundação Gulbenkian, apontou-o ainda como “autor de uma obra poética singular e de grande qualidade” e “um tradutor notável”. “À sua família e amigos, envio sentidas condolências”, termina.

Católico, cineclubista, autor premiado

Pedro Mário de Alles Tamen nasceu em Lisboa a 1 de dezembro de 1934 e licenciou-se em direito pela Universidade de Lisboa, mas não chegou a exercer como jurista. Ali conheceu Nuno Bragança (1929-1985), autor do célebre romance A Noite e o Riso (1969), com quem assinou pelo menos uma peça de teatro radiofónico. Foi chefe de redação do jornal Encontro, da Juventude Universitária Católica, e fez parte do movimento cineclubista português, que a partir da década de 1950, mas sobretudo na seguinte, divulgou o cinema em várias cidades do país e alimentou o esclarecimento dos jovens que não se identificavam com a situação política. Foi um dos fundadores do conhecido Centro Cultural de Cinema – Cineclube de Universitários Para uma Cultura Cristã, considerado dos mais dinâmicos cineclubes do país no fim dos anos 1950.

Foi ainda professor de literatura portuguesa e de francês no ensino secundário e diretor-adjunto da revista de artes e espetáculos Flama. Com António Alçada Baptista e João Bénard da Costa participou no projeto da Livraria Morais e ali dinamizou até 1975 a coleção “Círculo de Poesia”. Foi um dos fundadores, e editor, de O Tempo e o Modo, revista progressista de inspiração cristã. Esteve na primeira direção da Associação Portuguesa de Escritores, em 1973, com José Gomes Ferreira como presidente.

Foi eleito Presidente do Pen Club Português, de 1988 a 1991, e em 1993 foi condecorado com a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique, atribuída pelo Presidente da República a quem “houver prestado serviços relevantes a Portugal, no país e no estrangeiro, assim como serviços na expansão da cultura portuguesa ou para conhecimento de Portugal”.

Dos vários prémios literários que recebeu, destacam-se o Grande Prémio de Tradução Literária em 1990, o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1991, o Prémio PEN de Poesia em 2001 e o Prémio Luís Miguel Nava em 2006.  Em 2008, na primeira edição do Prémio Literário Inês de Castro, tinha sido distinguido pela obra Analogia e Dedos, com que assinalou 50 anos de vida literária. Recebeu o galardão das mãos da então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima.

Helder Macedo: “Até já ao meu amigo Pedro”

Ao Observador, o escritor, poeta e investigador literário Helder Macedo enviou um testemunho sobre Pedro Tamen: “Tivemos (tenho por ele, porque essas coisas não passam) uma amizade fraterna, de longa data. Até fazíamos anos quase no mesmo dia, ele a 1 de Dezembro eu a 30 de Novembro, ele um ano mais velho do que eu. Da parte institucional da vida dele vai-se certamente (e merecidamente) escrever muito: editor da coleção Círculo de Poesia na Moraes; vida interrompida pela guerra colonial, em Moçambique; brilhante presidência do PEN quando o PEN teve uma notável relevância na vida cultural portuguesa; eficientíssimo Administrador da Gulbenkian. Foi talvez a pessoa profissionalmente mais cumpridora que conheci. Nos intervalos, como se tal não bastasse para ocupar o seu tempo, foi um brilhante tradutor literário. A sua tradução de Proust é insuperável. Como se Proust tivesse escrito e recuperado o seu perdido tempo escrevendo em português. Mas Pedro Tamen foi também, e sobretudo, um dos mais notáveis poetas portugueses da segunda metade do século passado. De par com Mário Cesariny ou Herberto Helder, seguindo uma via oposta (complementar?) à deles. A poesia deles transborda fronteiras. A do Pedro Tamen íntegra-as. Dentro das fronteiras rígidas do metro e da rima os seus poemas processam desintegrações sintáticas como se num fértil casulo de metamorfoses musicais que reconciliam hedonismo e espiritualidade, Eros e Ágape, a carnalidade irónica de Falstaff e o ascetismo sensual de Hamlet. Subvertem por dentro. De fora para dentro. O fora subvertido é o seu centro. Não admira que tenha sido o poeta mais citado (mais integrado) por Maria Velho da Costa numa sintaxe narrativa que seria de poesia se ela a tal se tivesse aventurado.  A nossa comum amiga Maria Velho da Costa (a Fátima, para os amigos) despedia-se sempre dos amigos com um intemporal “até já”. Assim também digo eu hoje, ao meu “até já” ao meu amigo Pedro”