Enviado especial do Observador, em Tóquio

Al Joyner, antigo técnico e marido da falecida Florence Griffith Joyner, não tinha dúvidas em relação a algo que anda há muito no ar mas que ainda não se concretizou: a queda do recorde feito pela ex-mulher falecida com apenas 38 anos em 1998, conseguido em Indianapolis em julho de 1998, ainda antes dos Jogos de Seul. Há mais de três décadas que dezenas e dezenas de mulheres tentaram o mesmo sem conseguir, sem sequer garantirem uma aproximação que o colocasse em perigo. “Recordo-me que um dia disse que não queria que ninguém fosse como ela, queria que se dessem passos maiores que os dela. Esse era o seu sonho”, disse à Associated Press.

Na cabeça de Al Joyner, também ele um antigo campeão olímpico hoje de 61 anos que ganhou nos Jogos de Los Angeles de 1984 a final do triplo salto, o recorde mundial ia mesmo cair em Tóquio, ia mesmo cair este sábado na corrida decisiva e ia mesmo cair por Shelly-Ann Fraser-Pryce, conhecida como a Mommy Rocker que em junho fez uma corrida a 10,63 que a colocava com a segunda melhor marca de sempre. O americano falhou em tudo.

À semelhança do que aconteceu na véspera, as comitivas voltaram a ocupar determinadas zonas das bancadas simulando a falta de público para acompanhares os seus compatriotas. Esta noite estavam divididos em três grandes blocos: uma primeira, do lado oposto à bancada de imprensa, onde se acompanhou a qualificação do salto em comprimento masculino; uma segunda, quase numa espécie de peão, onde se concentrava quem ia seguir a final do lançamento do disco com muitos suecos marcar presença (para ver a conquista logo de duas medalhas); uma terceira, ou mais barulhenta ou mais próxima dos nosso ouvidos, onde se misturava o domínio do fundo com Etiópia e Uganda e a hegemonia da velocidade com a Jamaica. Eram apenas 15 filas, com das bancadas com escadas pelo meio, que dividiam uns e outros. Todos acabaram por fazer a festa.

Houve quase uma conjugação de dados a querer empurrar as jamaicanas para o pleno, a começar pelo castigo por doping imposto a Blessing Okagbare, nigeriana que acusou uma substância com hormonas de crescimento num teste feito a 19 de julho fora da competição, e pela surpreendente ausência da britânica Dina Asher-Smith. Assim, e além das duas suíças que nas meias-finais mostraram que estavam apostadas em intrometer-se na luta pelo pódio, sobrava sobretudo a marfinense Marie-Josee Ta Lou. De nada valeu, a Jamaica conseguiu mesmo as três medalhas como acontecera em Pequim, no ano de 2008, sem dar margem para intromissões pelo meio como aconteceu com Carmelita Jeter (2012) e Toti Bower (2016). Mais uma vez, a surpresa foi mesmo a ordem das medalhas, com Elaine Thompson-Herah a bater a compatriota Shelly-Ann Fraser-Pryce pelo ouro.

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– Se não tivesse levantado o dedo antes a festejar, podia ter chegado ao recorde do mundo?
– Não sei, talvez…
– E quando é que vai bater o recorde do mundo dos 100 metros?
– Vamos ver, é um processo que está em construção…

Ao contrário do que aconteceu na estafeta dos 4×400 mistos, ganha de forma brilhante pela Polónia numa prova que foi tendo várias lideranças e que acabou com outra surpresa que foi a chegada da República Dominicana à medalha de prata, a apresentação da corrida decisiva dos 100 metros colocou mesmo o momento como um dos pontos altos dos Jogos com tudo às escuras, um foco apenas nas atletas, uma disposição através de luzes de quem eram as finalistas como não é normal de acontecer nestes momentos e uma estranha capacidade de repor toda a iluminação em poucos segundos (nada a ver com o que se demora quando falha uma das torres de iluminação artificial nos estádios nacionais que recebem jogos da Primeira Liga, que demoram bem mais).

Depois, a corrida histórica. Apesar de existir uma clara preferência por Shelly-Ann para o ouro, depois das conquistas de 2008 e de 2012, do terceiro lugar em 2016 e de um regresso fabuloso depois de ser mãe, Elaine Thompson voltou a ser mais forte como no Rio de Janeiro e bateu o recorde olímpico com 10,61 mesmo sem ter aquele final de corrida que poderia ter rendido ainda menos tempo. Todas as atletas medalhadas, que também representam três gerações distintas (Shericka Jackson acabou com o bronze), desfizeram-se em elogios mas o ambiente não foi propriamente o mais efusivo entre compatriotas naquela que foi a despedida nos 100 metros de Shelly-Ann dos Jogos Olímpicos, querendo antes entrar ainda nos Mundiais de 2022, em Oregon.

“Estou muito feliz pela forma como entrei nos meus quartos Jogos Olímpicos com medalha e com outras duas atletas do país no pódio. Isto é um legado para a Jamaica, diz muito sobre o que temos. Jogos de Paris? Não, esta foi a minha última presença. Estou muito agradecida por estar aqui e como mãe mas também sei que com 34 anos as pessoas dizem que a carreira está para acabar. Relação com a Elaine? Olho sempre com respeito para todas as minhas adversárias, não vou dizer quem merecia mais ou não porque todas trabalhamos muito. Como me sinto? Agora desapontada, claro, é a primeira reação. E fui e sou sempre uma atleta honesta, quando corro é para ganhar. Ainda assim, sinto-me agradecida por esta oportunidade que tive”, disse Shelly-Ann Fraser-Pryce, que apareceu com um cabelo pintado de amarelo e vermelho que deu nas vistas logo na primeira aparição feita.

“Como uma bicampeã olímpica, estar outra vez na final deixou-se super nervosa mas o meu corpo teve depois de controlar isso. Conseguir um máximo pessoal e um recorde olímpico é o melhor para mim. Segundo melhor tempo de sempre? Um dia esses registos vão ser apagados. Duelo a ganhar 6-2 com a Shelly-Ann? Honestamente não reparei nas estatísticas antes, não conto isso. Ela é muito talentosa, uma grande atleta, que colocou a barrar para todas nós, a geração mais nova que apareceu. Um dia em breve ela irá abandonar o desporto e vai deixar uma marca no atletismo porque é uma inspiração para todas”, comentou a campeã Elaine Thompson-Herah, também ela com um longo cabelo descolorado e com uma fita trabalhada na cabeça.