Enviado especial do Observador, em Tóquio

O olhar com que estava na zona de aquecimento mais de uma hora antes do início da final, com os phones nos ouvidos enquanto ia fazendo alguns exercícios mais leves, era o mesmo olhar que tinha na zona mista a seguir à qualificação quando estava a olhar para os ecrãs a ver o salto de Ana Peleteiro enquanto Yulimar Rojas, quase ao seu lado, dava saltos e batia palmas pela amiga e companheiro de treino em Guadalajara. Um olhar focado, um olhar de total concentração, um olhar de quem percebe tudo o que tem à volta mas não se deixa enganar pelo que está à sua volta. Ao contrário do que aconteceu por exemplo com a final do peso, que tinha quatro atletas num nível superior e apenas uma ou duas a poderem fazer uma surpresa, o momento decisivo do triplo era dos mais abertos dos últimos anos com uma série larga de candidatas para os três lugares do pódio.

Com o passar dos anos, a atleta portuguesa foi lidando cada vez melhor com os momentos da verdade. Já antes era assim, como se viu naquela prata dos Europeus de 2012 com recorde nacional, mas os melhores exemplos apareceram nos Europeus e nos Jogos de 2016: nos primeiros, bateu o recorde nacional em 14,58 e chegou ao ouro; nos segundos, bateu o recorde nacional em 14,65 e ficou na sexta posição. Patrícia Mamona fez o trabalho, trabalhou para melhorar o seu registo, conseguiu bater o recorde nacional e a seguir dependia também do que faziam as restantes adversárias. Em Tóquio, não seria exceção. E mesmo sem querer falar em marcas, somando a marca de qualificação com a distância a que ficou da tábua no apoio já chegava para essa marca.

Concentração era a palavra de ordem e foi isso que Patrícia Mamona fez durante mais de uma hora. Sempre no seu cantinho, sem fatores de distração. A única altura durante todo aquele período em que houve um sorriso, e até rasgado, foi quando saiu para a pista na apresentação oficial. Um sorriso largo, um coração desenhado com as mãos, um beijinho para a câmara, uma corrida para a zona de prova. Depois, de novo a concentração. Total. Mas todo aquele ritual estava assente num outro ponto muito importante, a confiança. Muita confiança.

O sorteio juntou logo no arranque alguns dos nomes mais fortes do concurso. Caterine Ibarguen, colombiana que partia como campeã olímpica em título. Yulimar Rojas, venezuelana campeã mundial e vice-campeão olímpica (e grande favorita). Patrícia Mamona, campeã europeia em título de Pista Coberta. Keturah Orji, recordista nacional dos EUA. Ana Peleteiro, recordista espanhola que trabalha com Ivan Pedroso no grupo que tem Yulimar Rojas e o namorado Nelson Évora. Mas ainda havia Shanieka Ricketts, Thea Lafond, Liadagmis Povea, alguma surpresa que pudesse aparecer. Mas a portuguesa sabia ao que vinha, como vinha e para onde ia. Sabia e bem.

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Ibarguen começou com 14,17, Rojas abriu quase a ganhar o concurso a fazer 15,41, Patrícia começou logo na primeira tentativa a bater o recorde nacional por 25 centímetros. Assim mesmo, 25 centímetros. Vinte e cinco.

Desde que começou no triplo com o seu treinador de sempre, José Uva, esta foi a 11.ª vez que a atleta bateu o recorde nacional da disciplina. A primeira vez, ainda em 2009 e pelo JOMA, foi em Salamanca a 13,83; depois, o grande salto surge dois anos depois, curiosamente quando se mudou para o Sporting, onde passa de 14,12 para 14,42, sendo que a partir daí quebrou a melhor marca nas grandes competições: Europeus de 2012, Europeus de 2016, Jogos Olímpicos de 2016. A exceção foi mesmo esta última marca de 14,66 no Mónaco, há três semanas, que foi um sinal daquilo que a própria admitiu que poderia alcançar aqui em Tóquio. Ainda assim, nada de festa, nem um sorriso. Rosto compenetrado, olhar cúmplice para o técnico na bancada, segundo lugar na prova.

O corte no final do terceiro salto começou a fazer uma escolha onde já não entrava Ibarguen, muito longe do que é capaz de fazer e a terminar em décimo com 14,25, ficando de fora tal como Rouguy Diallo, Kristiina Makela e Thea Lafond, que arriscou tanto que fez dois nulos. Lá na frente, com Rojas a ameaçar o recorde mundial em todas as tentativas e Patrícia Mamona a arriscar para chegar aos 15 metros, Ana Peleteiro conseguiu bater o recorde de Espanha com 14,77 e ficou à frente de Povea (14,70) até aparecer mais a sério no concurso a jamaicana Shanieka Ricketts, que ameaçou a segunda posição da portuguesa com um salto de 14,84.

Mais uma vez, a “pressão” foi um pequeno empurrão para Patrícia Mamona voltar a superar-se neste caso como nem a própria conseguiria imaginar: apesar de ter ficado a 12,9 centímetros da tábua na chamada, o que fez com que olhasse para José Uva com uma cara de quem ainda queria mais, Portugal teve pela primeira vez uma atleta a saltar acima dos 15 metros (15,01), o que dava neste caso mais 35 centímetros do que o recorde nacional antes do início desta final. Se já não havia palavras para o que se passara, ainda menos ficaram. Com essa certeza: sem bater o recorde nacional, Patrícia não ia às medalhas nem passava sequer do quinto melhor registo. E ela sabia disso, preparando da melhor forma este concurso com um primeiro salto que fez tudo o resto.

Só mesmo a seguir ao último salto Patrícia voltou a sorrir. Neste caso, várias vezes. A estratégia foi perfeita e provou que, aos 32 anos (33 no final de novembro), está melhor do que nunca, capaz de superar pela 13.ª vez (ou mais) o recorde nacional do triplo salto talvez já nos Campeonatos do Mundo, em Oregon, no próximo ano. Se é verdade que Yulimar Rojas está num nível muito superior e para recorde mundial, como acabaria por fazer na última tentativa (15,67), se é verdade que Ana Peleteiro deu um salto enorme em termos de marca com um 14,87 que lhe valeu o bronze, a portuguesa é uma máquina de treino, de competição e de grandes momentos como há pouco no nosso país e este acabou por ser um prémio justo para uma atleta que foi campeã europeia ao Ar Livre, que é campeã europeia em Pista Coberta mesmo tendo apenas um mês de preparação após contrair Covid-19 e que é agora vice-campeã olímpica numa prova de exceção que consagrou um percurso brilhante.