Enviado especial do Observador, em Tóquio

– Então, o que vamos fazer amanhã para aproveitar o dia?

Qualquer casal tem os seus planos. Pode ir passear, pode ir jantar fora, pode ir ao cinema, pode ir a qualquer tipo de espectáculo. Pode até não fazer nada, sendo que isso pode significar tudo e mais alguma coisa. Em outubro de 2020, Janja Garnbret perguntou isso ao namorado, Domen Skofic. A proposta era ainda assim um bocadinho diferente: subir a chaminé mais alta da Europa, na cidade eslovena de Trbovlje. 360 metros sempre para cima, naquela que é também a 18.ª torre mais alta do mundo. Passaram ali várias horas. À terceira tentativa, conseguiram subir de uma assentada sem caírem. Estava cumprido mais um desafio.

“Foi claramente a coisa mais especial que fiz na minha carreira de escalada. É uma subida mas é também uma combinação de tudo aquilo que tinha experimentado antes mas apenas numa só coisa”, contou Skofic, que representou a Eslovénia em seis edições dos Mundiais entre 2011 e 2019 (e chegou a sagrar-se campeão), numa entrevista à CNN. “Isto também faz com que cresças enquanto pessoa, ganhas logo uma perspetiva diferente da escalada e gera um sentimento diferente, como nunca tinha sentido antes. Sou uma pessoa que está sempre à procura de um novo desafio, que quer fazer coisas novas e melhores. Foi um projeto muito interessante que me tirou da zona de conforto”, acrescentou Garnbret, a melhor da modalidade de todos os tempos apesar de ter 22 anos. Se hoje o Aomi Urban Sports Park estava tão composto, era por ela.

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A primeira tentativa, falhada por questões físicas e de desidratação, demorou quase 12 horas. A segunda, já quatro dias depois, foi cumprida com sucesso em cerca de sete horas e meia. “Agora que penso, recordo-me que me senti desconfortável pelo calor, pelo frio, pelo vento, por tudo. Cheguei a dizer que não queria mais, que não ia tentar mais. No final, foi uma experiência fantástica e sim, cheguei lá acima”, acrescentou.

A eslovena começou com sete anos num clube de escalada mas já antes fazia a sua “escalada”. Nas árvores, nos armários, nas portas. Foram os pais, as suas maiores influências, que acreditaram que havia algo mais do que a simples rebeldia de uma rapariga destemida e sempre a tentar ir mais alto. Hoje, com aquilo que podia ser só uma brincadeira mas que se tornou num caso muito sério, a rapariga que se inspirou na variedade de truques e no movimento do corpo treina cinco horas por dia, seis dias por semana, faz sessões de stretching e ioga e vai para a Áustria fazer alguns estágios ainda que tenha sempre a parede do namorado como centro de treinos, sendo que a distância entre todas as instalações que utiliza faz com que às vezes tenha de conduzir quatro horas. Ah, e tudo acabando no último lugar na primeira prova de sempre que fez.

A escalada é o momento em que me apaixono pela vida. Não existem formas de fazer batota quando se está numa parede, quando estás por ti. É um desafio contra ti próprio, físico e mental, de saber o que és capaz de fazer. Amo aquele sentimento de chegar ao topo depois de várias tentativas falhadas. Quando estou na parede nada mais interessa, posso refrescar e esquecer todos os problemas que tenha”, destacou a atleta eslovena ao canal olímpico.

“As pessoas às vezes perguntam-me se me costumo comparar com os outros mas não, na verdade não. Estou só a divertir-me na parede, estou só a fazer escalada, estou só a testar os meus limites. Nunca pensei que era melhor do que qualquer pessoa, gosto apenas de fazer escalada”, destaca em quase todas as entrevistas. Uma posição humilde de quem está a anos luz de todas as outras adversárias e que só tem quem lhe dê alguma luta na parte da subida em velocidade (já lá vamos explicar todas estas regras da nova modalidade).

Com apenas 22 anos, a eslovena que até na sala de imprensa consegue arrancar aplausos quando acaba uma palavra leva seis títulos Mundiais entre outros triunfos nas disciplinas específicas. Nunca ninguém, nem no setor masculino, conseguiu esse feito que tem mais uma particularidade: nos últimos 78 percursos que teve pela frente antes dos Jogos conseguiu superar 74. O sucesso acabou por trazer uma autêntica legião de seguidores, entre Red Bull, Adidas, Five Ten, Camp Cassin ou até o Exército da Eslovénia. Em Tóquio, todas as atenções estiveram sempre centradas em si e a medalha de ouro foi quase uma inevitabilidade, com as duas japonesas que chegaram à final a assegurarem os restantes lugares do pódio.

Algum sangue, muito suor mas nada de lágrimas – o que conta é mesmo a festa

A final feminina, realizada num Aomi Urban Sports Park que desmontou todas as infraestruturas que tinha do basquetebol 3×3 menos as bancadas para comitivas e convidados para dar início à escalada, teve um pouco de tudo em termos desportivos. Muito suor, porque facilidades é coisa que não existe neste desporto, algum sangue, em cortes nas pernas já devidamente tratados com pensos ou um golpe feio na cara de Brooke Raboutou, que bateu num dos apoios na parede numa queda e ficou bem marcada na zona do malar, nada de lágrimas porque sem aquelas sessões de cumprimentos como no skate há um bom ambiente.

Com alguma surpresa, embora a prova de velocidade seja um pequen0 calcanhar de Aquiles para a eslovena, Janja Garnbret perdeu logo no primeiro duelo com a francesa Anouk Jaubert mas terminou ainda a prova de velocidade na quinta posição, atrás da polaca Aleksandra Miroslaw, de Jaubert e das japonesas Miho Nonaka e Akiyo Noguchi. Seguiu-se a prova de bouldering. Resumo? Três paredes com referências diferentes que as oito finalistas estudam durante um minuto e meio antes de irem para dentro e ser apenas a atleta em ação na parte de fora. Miroslaw, a melhor na velocidade (e duas vezes campeã mundial aí), ficou de longe em último ao não conseguir sequer chegar a meio em nenhum. Garnbret arrasou, com dois completos e um a meio.

Tudo terminada com a prova de lead, uma parede enorme de escalada com desafios verdadeiramente difíceis, necessidade de fazer acompanhar sempre a corda em ganchos e onde à primeira queda da parede a prova terminava. A eslovena já tinha a vitória em condições normais controlada mas havia o resto do pódio e até uma possível surpresa entre as demais concorrentes. E sobretudo aqui, já com a noite posta, a escalada tornou-se numa espécie de espectáculo ao ar livre: cadeiras mais perto do local da prova com centenas de pessoas, muito espaço atrás para se assistir de pé, muitos aplausos até a seguir os avanços dos atletas, como aconteceu de forma mais sonora com Akiyo Noguchi quando passou do 20 e chegou à 28.º.

Para se ter noção do que é o domínio da eslovena, aquela chegada ao 20º ponto da parede motivava uma reação quase como se estivesse dobrado o Cabo das Tormentas e a partir daí tudo o que viesse era bom. No caso de Garnbret, só quando chegou ao 28.º é que começou a aumentar o apoio. Porque o que para todas as outras é difícil, para ela é normal, nunca abdicando de uma passagem pelo pó de talco que leva nas costas e dos binóculos cá em baixo para estudar o percurso. Porque o que para todas as outras é impossível, para ela é um pouco mais complicado. Foi assim que chegou à marca 37 já com o tempo a acabar, numa prestação que voltou a arrasar por completo a concorrência. Esse é talvez o problema da escalada: além de não ter o potencial do surf ou do skate, além de não ser um desporto que se possa fazer onde não existam paredes de escalada, só tem alguma competitividade do segundo para baixo. E serão os próximos três anos a ditar o futuro da escalada nos Jogos a partir de 2024, em Paris, onde a modalidade já está confirmada.

P.S. No final, já mais no final e com a prova do lead, percebemos as pontuações. Então é assim: todas as atletas ficam com pontuação de 1.00 a 8.00 mediante o lugar em que ficam, sendo que depois todos esses valores multiplicam. Um exemplo: Miroslaw foi a mais rápida e ficou com 1.00, foi a pior no bouldering e ficou com 8.00, chegou ao lead só com 8.00 (1×8=8) mas como foi também a pior no lead acabou em quarto com 64.00, os mesmos pontos que Akiyo Noguchi, medalha de bronze que foi quarta (4.00) em tudo. Chaeyun, da Coreia do Sul, foi a pior da velocidade (8.00), a penúltima do bouldering (7.00) e de nada valeu ser a segunda melhor no lead (2.00) porque já vinha com o tal 8×7=56 que multiplicaria por dois. E Garnbret? Simples: foi a quinta na velocidade (5.00), foi a melhor no bouldering (1.00) e no lead (1.00) e acabou apenas com 5.00, bem à frente de Miho Nonaka, terceira na velocidade e no boldering e quinta no lead mas que beneficiou de multiplicar esse 5.00 apenas por 9.00 dos dois terceiros lugares.