“Espere um minuto, Doc. Está a dizer-me que construiu uma máquina do tempo a partir de um DeLorean?” Marty McFly não foi o único a ficar maravilhado. “Regresso ao Futuro” não seria o mesmo sem o carro de portas asa de gaivota que é tão importante para a trilogia como as personagens principais. Mas, quando a história chegou aos cinemas, em 1985, o DeLorean já era uma anedota, pelo menos nos EUA — no resto do mundo, muita gente (como eu) assumiu que o veículo tão fora da caixa tinha sido criado exclusivamente para o filme, não era possível que circulasse por aí numa estrada qualquer. Bom, possível até era, já que chegou ao mercado em 1981, mas teve tantos problemas que as críticas negativas rapidamente se sobrepuseram à imensa expetativa que tinha gerado.

A ideia nasceu na cabeça de John DeLorean e a sua espetacularidade foi proporcional à catástrofe, agora explicada em “Mito e Magnata: John DeLorean”, a nova série documental da Netflix. Em três episódios relata-se o percurso de um homem brilhante que, afinal, não passava de um vigarista. A história avança e recua para nos mostrar, ora a infância abusiva com um pai alcoólico, ora a vida de luxo numa penthouse em Nova Iorque.

Criado em Detroit, numa família vinda da Roménia que tentou (sem grande sucesso) viver o sonho americano, DeLorean depressa mostrou que tinha potencial. Na escola secundária, os esboços que fazia eram tão incríveis que estavam constantemente expostos nos corredores. Formou-se em engenharia, trabalhou na Chrysler e na General Motors, onde toda a gente decorou o seu nome. Aos 40 anos tornou-se o mais novo vice-presidente da empresa.

No entanto, John DeLorean queria mais. Empolgante e irreverente, largou o fato aborrecido e o penteado igual a todos os outros executivos e substituiu-os por cirurgias plásticas e idas obsessivas ao ginásio. Desfilou o seu novo carisma por Hollywood e em 1973 deixou o conforto de um dos postos mais cobiçados da indústria automóvel para fundar a DeLorean Motor Company (DMC). O objetivo era só um: criar um carro desportivo diferente de tudo o que tinha sido fabricado até então. Foi feito um protótipo que era mostrado para vender a ideia e a estratégia resultou. Toda a gente queria ver aquele carro que parecia ter o poder de voar. Era inteiramente feito em aço inoxidável, gastava pouca gasolina e o seu charme era vendido por um homem igualmente carismático e vaidoso — não foi por acaso que deu ao carro o próprio nome.

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Unveiling of the DeLorean Motor Car - February 8, 1981

Johnny Carson e John DeLorean na apresentação do DeLorean Motor Car, em fevereiro de 1981, no Biltmore Hotel em Los Angeles © Ron Galella/Ron Galella Collection via Getty Images

Os três capítulos da série têm ritmo, estão bem estruturados, têm muito material inédito e depoimentos de pessoas próximas de DeLorean, desde o filho Zach a uma produtora que fez um documentário sobre ele nos anos 80, passando pela ex-mulher, Cristina Ferrare, a modelo 25 anos mais jovem com quem se casou na fase em que reinventou toda a sua imagem. Falam também pessoas envolvidas na produção do modelo, que não arrancou assim tão facilmente como se pensaria. O carro era inovador, sim, mas nos EUA não houve ninguém a querer financiá-lo. Foi na Irlanda do Norte, mergulhada em conflitos entre católicos e protestantes, que nasceu a fábrica e 2500 postos de trabalho. O governo local financiou e DeLorean começou por ser adorado em Belfast, era uma espécie de salvador de uma classe operária dominada pelo desemprego. Era tudo lindo e maravilhoso, até havia 30 mil encomendas nos Estados Unidos, jurava DeLorean. Era mentira, claro. Mas, nessa altura, os esquemas do engenheiro visionário ainda passavam entre os pingos da chuva — apesar de uma secretária ter denunciado esquemas fraudulentos na DMC e de ele ser conhecido como “10%” por tirar dinheiro da empresa.

[O trailer de “Mito e Magnata: John DeLorean”]

Os primeiros carros chegaram em 1981 e foram um desastre. As pessoas entravam mas já não conseguiam sair porque as portas não abriam, a potência estava longe daquela que tinha sido prometida. Contudo, não foi isso que arruinou as hipóteses da marca. Na Irlanda do Norte o dinheiro tinha-se esgotado (e não era a primeira vez), a produção não avançava e muitas pessoas já tinham sido despedidas. John DeLorean tinha de encontrar uma solução para salvar aquele que tinha sido sempre o seu sonho, apesar da ganância e do facto de gastar milhões sem consequência o terem feito desviar-se do objetivo há muito. O que fez foi digno de um argumento de Hollywood. Em outubro de 1982 foi preso por tráfico de droga, apanhado numa investigação do FBI com um agente infiltrado. Aos poucos foi-se descobrindo o outro lado do empresário gingão, cujos esquemas para enganar pessoas recuavam até ao tempo da faculdade. O julgamento foi um circo mediático e o veredito novamente saído de um filme. Inocente, considerou o júri. Quanto ao DeLorean, não houve salvação possível. A fábrica fechou e o flop do projeto só foi disfarçado com a estreia de “Regresso ao Futuro”. O carro passou a modelo de colecionador e assim se mantém até hoje.

“Mito e Magnata: John DeLorean” podia ser uma história de sucesso sobre um self-made man que, contra todas as expetativas, tinha conseguido libertar-se de uma vida de pobreza, ascendendo a uma posição de topo graças a muito talento e perseverança. Mas, em vez disso, expõe um cocktail explosivo feito de ganância, egocentrismo e total falta de empatia pelos outros. Muitos podem dizer que John DeLorean teve o final que merecia — morreu em Nova Jérsia, num apartamento sem elevador, longe dos mordomos e dos lustres de cristais — mas os estragos que causou à sua volta ficaram sem reparação. O filho, Zach, diz na série o que provavelmente muitos dos envolvidos pensam: “Quem me dera ter tido a porra de uma granada para atirar àquela coisa”.