Cores, os Beatles e a primeira aparição na televisão norte-americana do quarteto de Liverpool. A aparição no “Ed Sullivan Show” é uma falsa partida para “McCartney 3, 2, 1”, ou uma partida, no sentido de travessura, para este excelente documentário, em seis partes, que chega ao Disney+ nesta quarta-feira. Ao todo são cerca de três horas, realizadas por Zachary Heinzerling,  com uma premissa tão simples – e pouco usual – que custa pensar que realmente resulta. E resulta.

Eis a falsa partida/partida. A imagem dos Beatles na televisão norte-americana atira o espectador para um cliché, uma imagem mastigada e uma história vezes e vezes revisitada na carreira dos Beatles. Remete para um documentário como outros. Só que não, as imagens de arquivo transformam-se num cenário filmado a preto e branco, com dois homens, cadeiras, uma mesa de mistura, um piano e mais alguns objetos. À apresentação minimalista corresponde uma ideia minimalista.

[O trailer de “McCartney 3,2,1”]

Os dois homens são Paul McCartney e Rick Rubin. Músico e produtor estão ali para falar da música de McCarthey, nos Beatles, nos Wings e a solo. Rick escolheu umas quantas canções do universo McCartney e vai colocá-las a tocar, usando a mesa de mistura para separar alguns elementos, para perguntar a Paul sobre algum detalhe – e para Paul falar sobre ele ou, rapidamente, viajar para outros lugares – e daí partir-se para uma conversa onde reina o deleite de conversar. A narrativa faz-se pela imprevisibilidade do diálogo, das ideias e da memória a correr.

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Ensaiado ou não, pouco importa. Sobressai em “McCartney 3, 2, 1” a naturalidade da conversa sobre música, o gosto em comum pelo processo e pelo resultado final. O segredo está na mesa de mistura. “McCartney 3, 2, 1” constrói o deleite de conversas à mesa – com duas ou mais pessoas – em volta de uma mesa de mistura. A entrada de uma nova música é como um novo prato a chegar, quando qualquer um dos intervenientes mexe nos botões, é como se fosse uma garfada. Cada garfada sabe a algo diferente. Por vezes, provam os pratos um do outro.

© DR

Em certas alturas, pode-se dizer que nunca se ouviu os Beatles assim. Até certo ponto é verdade. As canções que Rick escolheu oferecem uma viagem pessoal e transversal à carreira de Paul e isso proporciona que o músico fale de uma forma livre e espontânea sobre a vida em estúdio, como as ideias surgiram e que ambições os Beatles tinham em determinados momentos da década de 1960.

Os momentos de surpresa acontecem com frequência. O som que sai das colunas e a forma como Rick Rubin coloca o espectador a ouvir a música do universo McCartney, separando as pistas, revelam detalhes surpreendentes, que escapam a ouvidos menos treinados e que dão lugar a novos lugares nas músicas que se ouvem (sobretudo nas dos Beatles).

Os exemplos são vários, no primeiro episódio há um momento luminoso ao ouvir-se “While My Guitar Gently Weeps”, de “White Album”, quando Rick Rubin separa o baixo do resto na mesa de mistura. A música, escrita por George Harrison, esconde mais do que se pode pensar e a viagem que Paul oferece pela construção do tema – o próprio está surpreendido com o que ouve – ou o que conta da participação de Eric Clapton, tornam a cena singular. Sem grandes revelações ou coisas bombásticas, apenas a clareza e o desarme de quando se mete e ouve duas pessoas a falarem.

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Ao longo das três horas, há revelações sobre a história de McCartney e dos Beatles, sem o sentido de exclusividade ou de algo bombástico, apenas a naturalidade de um livro aberto de uma conversa descomprometida, que nasce da música e da conversa sobre música. “McCartney 3, 2, 1” é a primeira de duas viagens em 2021 pelo universo dos Beatles, no final de Novembro, também na Disney+, chegará o documentário em três partes “The Beatles: Get Back”, de Peter Jackson, a partir de dezenas de filmagens nunca vistas durante a gravação de “Let It Be”.

Para já, há este deleite chamado “McCartney 3, 2, 1”. Considere a série documental que está na Disney+ como um menu de seis minipratos, todos muito bons. Com a melhor companhia.