“Houve um tempo em que a nossa luta era apenas para nos mantermos vivos. Houve uma noite em que a minha família estava a dormir. De repente, acordámos e havia incêndios por todo o lado depois de algumas bombas terem rebentado. A primeira coisa que vimos quando saímos pela porta foi uma série de pessoas que estavam deitadas no chão. Só estávamos à espera de morrer…”.

Com apenas 11 anos, Salum Ageze Kashafali viveu o que nenhuma criança ou pessoa deveria ter de viver na guerra civil na República Democrática do Congo, entre dificuldades de quem tinha pouco ou nada e andava a mendigar nas ruas em busca da generosidade de quem pudesse ajudar. Nessa mesma altura, mudou-se para a Noruega, naquilo que descreveu como “ganhar a lotaria”. Agora, com 27 anos, faz história. 

“Foi uma oportunidade num milhão que recebi, a possibilidade de passar de mendigar por comida para ter um teto. Foi maior do que alguma vez poderia imaginar”, contara ao site dos Jogos Paralímpicos.

Os primeiros tempos, ainda assim, não foram fáceis. Clima diferente, línguas diferentes, uma vida diferente de alguém que devido à doença de Stargardt foi perdendo de forma progressiva a visão. “Houve uma altura em que já não conseguia ver quase nada. Tentei as pistas, ganhei a minha primeira corrida e segui”, explicou o atleta que, quando era mais novo e podia, preferia o futebol. “Foi uma adaptação difícil, que só foi superada com os amigos que tinha à minha volta. Ir para a Noruega salvou-me a vida. A minha infância não foi correr ou jogar futebol, foi procurar comida e sobreviver. Por isso, senti que ganhei a lotaria, que me tornei com essa mudança um bilionário. Nunca na minha vida pensei que teria um teto e comida na mesa, nem nos meus melhores sonhos”, assumiu, falando também dos problemas que foi enfrentando.

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A partir dos 13, Salum começou a ter o que nunca tivera antes: aulas. Aprendeu a falar, a escrever, a contar. Aprendeu tanto que hoje é professor de matemática numa escola primária em Bergen. O atletismo começou mais a sério aos 17 anos, tendo passado apenas em 2019 para o para-atletismo quando a visão estava cada vez mais degradada. “Tive muito apoio nessa passagem, as pessoas deram-me muito apoio. Não sabia como iria ser do atletismo para o para-atletismo. Não se consegue perceber de imediato que tenho uma deficiência visual, é preciso olhar mais perto e seguir-me um pouco. Houve até quem achasse que estava a fingir, que no início não acreditou em mim, mas a maioria tem dado um grande apoio”, contou.

Não fui à escola até ter mais ou menos 13 anos. Não sabia ler, não sabia escrever o meu nome. Não foi fácil mas tem de ser. De forma calma vai-se conseguindo. Sempre disse aos meus pais que, se tivesse a oportunidade de ir para a escola, gostaria de ser professor. Adoro dar aulas!”

Agora, na defesa do título mundial conseguido no Dubai em 2019 e do europeu em Bydgoszcz este ano, Salum Ageze Kashafali sagrou-se campeão olímpico e bateu o recorde mundial em T12, sendo um dos mais rápidos competidores de sempre no desporto paralímpico com 10,43 na prova decisiva dos 100 metros.

“Não sei mesmo o que dizer… Isto apareceu do nada. Vim de mendigar nas ruas e acreditei. Mudei-me para a Noruega como refugiado. Já passei por tanto, das balas à fome, que estar aqui agora como um dos melhores representa muito para mim. Valeu a pena vir do zero para fazer algo. Nada é impossível, estou muito feliz por ser um dos mais rápidos de sempre no desporto paralímpico”, comentou em lágrimas no final, depois de ter ficado apenas a 0,01 daquele que é o melhor registo de sempre de um para-atleta, neste caso o brasileiro Petrucio Ferreira dos Santos que conseguiu fazer a distância em 10,42 nos Mundiais de 2019.