Por mais anos que passem a rã não perdoa que o escorpião a tenha picado enquanto lhe dava boleia para passar o rio. Há poucos dias, Francisco Pinto Balsemão referiu que, na história da vida de ambos, Marcelo Rebelo de Sousa é o escorpião. A homenagem que António Costa promoveu esta quinta-feira, em São Bento, ao antigo primeiro-ministro estava, por isso, destinada a ser lendária. O Presidente da República lá apareceu, mas pouco (embora isso seja tão natural como a picada do escorpião).
Antes de a cerimónia começar, Marcelo esteve na Sala da Lareira da residência oficial do primeiro-ministro, mas foi embora após o início do evento. Ainda acompanhou, no entanto, o patrão da Impresa até ao palco, e com ele segredou umas palavras ao mesmo tempo que o segurava pelo braço. Pouco depois, na sua intervenção, Balsemão referiu-se à presença “amiga” de Ferro Rodrigues, mas, no caso de Marcelo, apenas registou a “rápida mas simbólica visita do Presidente da República“.
António Costa já tinha organizado uma cerimónia similar, também em São Bento, em 2016, de forma a homenagear os 40 anos do I Governo Constitucional, liderado pelo antigo Presidente da República e fundador do PS, Mário Soares. Dessa vez, Marcelo também não teve lugar no palco nem ficou para assistir à cerimónia. Agora, tinha, no entanto, um motivo: foi secretário de Estado no segundo Governo de Balsemão e — embora o evento estivesse agendado como homenagem ao VII Governo Constitucional — tanto Costa como Balsemão explicaram que se estendia também ao VIII Governo, que teve o atual Presidente como secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e ministro dos Assuntos Parlamentares.
As picadas foram uma constante. Já no fim da cerimónia, Francisco Pinto Balsemão contaria a história de que, quando era primeiro-ministro, convidou Marcelo Rebelo de Sousa para jantar em São Bento no Natal por este estar sozinho. Questionado sobre se voltaria a convidar o agora chefe de Estado para jantar, Balsemão seria o mais seco possível: “Sim, no caso de ele estar sozinho“.
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As memórias de Francisco Pinto Balsemão — lançadas esta quinta-feira — são pouco abonatórias para o Presidente da República e o patrão da Impresa não o poupa nas entrevistas que tem concedido a propósito do livro (foi numa delas que comparou Marcelo ao escorpião, da lenda célebre lenda em que pica a rã sacrificando a própria vida).
Mota Amaral fala em “traições mesquinhas”, Costa em “minudências das polémicas”
Mota Amaral e António Costa — as duas personalidades, além do próprio homenageado que discursaram — também abordariam o assunto de forma subtil. Até porque a vida de Balsemão também são os seus adversários. O antigo presidente da Assembleia da República referiu que Balsemão encara a política com P grande por oposição a quem na política opta por “traições mesquinhas“. Falava-se novamente do escorpião Marcelo? Mota Amaral diria mesmo que Balsemão foi o mais atacado ad hominem, muito dentro do seu partido — algo de que Rio discordaria minutos depois em declarações no fim da cerimónia.
Já António Costa, não se quis meter entre senadores, dizendo que o facto de não ter vivido aquela época o dispensa de falar nas “minudências das polémicas da época“, preferindo olhar com “distanciamento para o essencial que ficou”.
“Querem levar PSD para a liderança da direita”
O antigo presidente da Assembleia da República Mota Amaral foi o primeiro a intervir na cerimónia de homenagem ao VII Governo Constitucional e elogiou Francisco Pinto Balsemão por se manter “sempre ativo e combativo” e por sempre ter promovido com entusiasmo “a democracia e o cunho europeu e ocidental em Portugal”. Mota Amaral referiu-se ainda ao antigo primeiro-ministro como um “senior statesman” que merece o “lugar cativo no Conselho de Estado” e que nunca abdica de dizer o que tem a dizer sobre o estado do país.
Mota Amaral lembrou também os tempos da ala liberal, mas, numa resenha histórica, recordo que Balsemão confrontou o PCP e PS (aliado e partido do anfitrião, António Costa). Isto porque, justifica, “para o PCP, comunismo queria dizer mesmo comunismo, queria dizer ditadura do proletariado; e para o PS, socialismo queria dizer mesmo socialismo e apropriação coletiva dos meios de produção”. Os mesmos PS e PCP que viam a social-democracia como a “antecâmara do fascismo”, enquanto o PSD se via a si próprio como um defensor da democracia e da livre iniciativa e um partido de centro-esquerda. Esse PSD, foi lembrando o antigo presidente da Assembleia da República, tem a marca de Balsemão.
O PSD foi abandonando, regista, essa referência de centro-esquerda e há quem tente “atirar o PSD para a liderança de um bloco de direita”, o que só serve uma “via de bipolarização” do país que cria uma situação de impasse no crescimento económico.
A referência única a Rangel
Mota Amaral disse que Francisco Pinto Balsemão foi o político mais atacado ad hominem até dentro do próprio partido. Mas Rui Rio, que até se reflete no estilo de liderança de Balsemão, diz que “agora” (ou seja, no seu caso) é “mais duro” do que era naquela época, lembrando, por exemplo, o impacto das redes sociais.
Nos bastidores do PSD, Paulo Rangel já trabalha para suceder a Rui Rio, que enfrenta uma oposição interna como acontecia com Balsemão. O antigo líder parlamentar do PSD fez questão de estar presente na cerimónia antes de preparar o ataque ao PSD e, posteriomente, a corrida à casa onde decorreu a cerimónia: a residência oficial do primeiro-ministro em São Bento.
Balsemão citou estrangeiros como Ignacio Ramonet ou John O’Sullivan, mas o único português que acabou por citar foi Paulo Rangel. Nada a ver com política partidária, mas dando margem para uma leitura política. “Paulo Rangel, em artigo publicado em 2017, resume bem a questão de fundo: ‘O salto tecnológico obriga a repensar a democracia liberal num quadro ‘pós-territorial’ — aquilo a que tenho chamado a democracia ‘pós-territorial’, citou Francisco Pinto Balsemão.
A juntar às teorias conspirativas há a acrescentar que, retirando quem foi convidado por inerência do cargo, por representação institucional, Paulo Rangel (a par de Carlos Carreiras, de quem Balsemão é mandatário em Cascais) foi dos poucos políticos convidados (nessas circunstâncias, sem uma justificação particular) para cerimónia.
Balsemão tem sido, no entanto, próximo de Rui Rio. Em 2015, chegou a promover um encontro em que lançava o atual líder do PSD para a Presidência da República. Objetivo: evitar que o escorpião fosse o candidato da direita. Não conseguiu.
Balsemão insistiu na defesa da comunicação social (como fez nos anos 70 e 80)
Na sua intervenção, Francisco Pinto Balsemão insistiu na “defesa do papel cada vez mais relevante que os meios de comunicação social profissionais, regidos por códigos deontológicos e sujeitos a sanções e sujeitos a sanções em caso de incumprimento, desempenham na sociedade de desinformação em que vivemos”.
O antigo primeiro-ministro alertou para o “avolumar da informação”, quer verdadeira, quer falsa, e a velocidade da sua circulação, torna os media “mais relevantes na legitimação do poder”. Apesar de as redes sociais, institucionais ou não, ganharem um grande protagonismo, “a credibilidade de certas informações que os poderes querem, ou não, comunicar passa pelos media profissionais”. Para demonstrar a importância dos media profissionais na validação de informação lembra o episódio da “história da licenciatura de José Sócrates”, que só foi validada uma semana depois de ser colocada “num site” quando a notícia “foi dada pelo Público e pelo Expresso”.
Francisco Pinto Balsemão refletiu ainda sobre os “poderes globalitários”, registando que os Governos nacionais, mesmo os mais poderosos, têm dificuldades, sobretudo, em regimes democráticos, para enfrentá-los.
Se Balsemão lembrou alguns dos feitos do seu Governo, o próprio primeiro-ministro fez questão de destacar alguns dos feitos dos dois Governos alvo de homenagem: o início do processo de adesão à União Europeia, a Lei da Nacionalidade, a navegabilidade do Rio Douro ou o novo quadro do direito penal próprio de uma sociedade democrática.
Na cerimónia estiveram presentes os ex-Presidentes da República António Ramalho Eanes e Cavaco Silva. Pedro Passos Coelho foi convidado, mas não pode comparecer. Vários membros do Governo estiveram presentes.