As placas tectónicas do planeta CDS já estão a dar de si. Em três dias, três figuras destacadas do partido — Mota Soares, Adolfo Mesquita Nunes e João Gonçalves Pereira — vieram a terreiro desvalorizar os resultados autárquicas e tentar estragar a festa de Francisco Rodrigues dos Santos. Nuno Melo, o possível challenger, mantém-se num silêncio tático. Mas os mais próximos do eurodeputado não têm dúvidas: vai mesmo tentar derrubar o líder do CDS no próximo congresso.
Seja como for, com Melo ou sem Melo, Francisco Rodrigues dos Santos está pronto para o embate. “Vai ser limpinho“, diz ao Observador fonte da direção do partido. O congresso, esse, deve acontecer em janeiro ou então ser antecipado — hipótese que o núcleo duro do líder democrata-cristão está a ponderar.
Ao longo da campanha autárquica, nem Melo nem Rodrigues dos Santos ficaram parados. O eurodeputado esteve ao lado de vários candidatos do partido e tem estado particularmente ativo nos seus ciclos mais próximos. O líder do CDS foi aproveitando o circuito da carne assada para percorrer todas as capelinhas — de 27 de agosto até ao último dia de campanha eleitoral, esteve em 72 concelhos do país, em contacto com candidatos e estruturas.
“Ele [Francisco Rodrigues dos Santos] tem muito conforto no aparelho partidário. A nossa convicção é a de que qualquer candidato que se apresente contra ele em Congresso perde“, sugere fonte da direção. Nem todos, naturalmente, pensam assim.
O copo meio vazio…
A narrativa dos críticos internos, no entanto, já está a ser ensaiada. Primeiro, logo no domingo, pela voz de Mota Soares. “O CDS não escolheu a afirmar a sua marca, houve poucos concelhos onde se apresentou sozinho. Precisa de se afirmar mais, precisa de marcar a agenda política e apresentar ideias fortes. Não está a conseguir marcar pontos e chegar às pessoas”, afirmou o ex-ministro do Trabalho e da Segurança Social aos microfones da TSF.
Depois, na segunda-feira, na SIC, foi a vez de Adolfo Mesquita Nunes. “O CDS quando vai sozinho está no fim da tabela dos partidos. Nos sítios onde fomos sozinhos, tivemos um mau resultado”, sublinhou o antigo secretário de Estado do Turismo.
Esta terça-feira, chegou a vez de João Gonçalves Pereira. “O CDS, quando vai sozinho, tem um resultado manifestamente preocupante”, argumentou o antigo deputado e líder da distrital do CDS/Lisboa.
A lupa dos críticos de Rodrigues dos Santos é colocada nos pontos do território onde o CDS foi a votos sem a sombra do PSD e testou a sua capacidade de implantação local. E não faltam argumentos para alimentar essa tese: nos concelhos de Setúbal, Santarém, Bragança, Leiria e da Guarda o CDS não conseguiu superar o Chega; em Viseu, chegou mesmo a ficar atrás de Chega e Iniciativa Liberal.
Em alguns centros urbanos, a realidade não foi muito diferente. Loures, Póvoa de Varzim, Seixal, Barreiro, Sesimbra, Paços de Ferreira, Felgueiras ou Oeiras, por exemplo, o CDS ficou sempre atrás do Chega.
A conquista de Lisboa ou a aliança produtiva conseguida com Rui Moreira no Porto é desvalorizada pelos críticos internos, que preferem olhar para outro dado: a média nacional das candidaturas autónomas do CDS é de 1,5%, pouco mais da média conseguida pela estreante Iniciativa Liberal (1,3%) e bem distante do igualmente estreante Chega (4,1%).
Na SIC, Adolfo Mesquita Nunes resumiu as coisas nestes termos: “O Chega e a Iniciativa Liberal estão a ganhar estrutura, a crescer, a implantar-se, e o CDS está no fim da tabela autárquica. É preciso fazer uma reflexão sobre o que estes resultados nos dizem. Estamos em condições de saber se o CDS vale, existe no terreno, se não for coligado com o PSD?”. A resposta, pelo menos para os críticos internos de Rodrigues dos Santos, é uma: se continuar a assim, não.
… e copo meio cheio
A narrativa de Francisco Rodrigues dos Santos não poderia ser mais diferente. Num texto publicado esta terça-feira no Facebook, o líder democrata-cristão faz o seu próprio balanço das eleições autárquicas.
“O CDS superou todos os objetivos a que se propôs: ganhou as suas 6 câmaras municipais, todas com maioria absoluta, o que não se verificava; elegeu muitos mais autarcas do que em 2017 e reforçou a sua presença territorial. Somos o único partido que participa em simultâneo na governação de Lisboa, Porto, Coimbra e Funchal. E temos representação política em locais onde há muitos anos não tínhamos”, argumentou.
Mais: Rodrigues dos Santos disse que o partido concorreu em listas próprias ou em listas lideradas por si em 99 autarquias, elegendo mais autarcas do que o BE, PAN, CH e IL juntos em todo o país”. Além disso, quanto às coligações com o PSD, os dois governam agora “mais do dobro das câmaras do que em 2017″, mais de 40 câmaras, entre elas as de 8 capitais de distrito, incluindo Lisboa”.
E quanto à percentagem nacional de votos — um dos grande argumentos dos adversários internos — Rodrigues dos Santos tem outras contas: “Somados os votos que nos correspondem nas coligações com os de listas próprias, a percentagem nacional de votos do CDS cresce substancialmente e aproxima-nos da terceira força política“.
“Os do costume vão torturando os números para diminuir o nosso Partido. Um ataque injusto a todos aqueles que deram a cara nestas eleições, num dos contextos mais difíceis da nossa história. Assumi [esta estratégia], tendo contra mim os críticos de ontem, que hoje ainda não baixaram armas diante destes resultados (muitos deles, pasme-se, eleitos em listas de coligação)”, rematou Rodrigues dos Santos.
Os Verdes do PSD ou um trunfo eleitoral?
Para os opositores internos, Francisco Rodrigues dos Santos está a preparar uma estratégia que pode conduzir o partido à sua diluição definitiva: entrar numa coligação pré-eleitoral com Rui Rio para as próximas legislativas.
O Observador sabe que a hipótese está de facto a ser considerada pela direção nacional do CDS e que o resultado nestas autárquicas só aumentou essa convicção. Além disso, e ao contrário do que argumentam os críticos de Francisco Rodrigues dos Santos, esta estratégia está perfeitamente em linha com o passado recente do partido, entendem os mais próximos do líder do CDS.
Na direção do partido, há até quem aponte para a ironia da crítica: Adolfo Mesquita Nunes, João Almeida, Pedro Mota Soares e João Gonçalves Pereira integraram ou patrocinaram várias coligações autárquicas por todo o país.
Pior: nas eleições legislativas de 2015, não fosse a coligação com o PSD depois da ressaca da troika e do “irrevogável” de Paulo Portas, e a história do portismo poderia ter sido outra.
De resto, o próprio Francisco Rodrigues dos Santos já o assumiu a viva voz: “Se se entender que esse é o caminho para que o bloco da direita some o maior número de deputados, para que não se desperdicem votos e para que haja um projeto reformista para Portugal, creio que o CDS não dirá que não”, chegou a dizer, ainda antes destas autárquicas.
Ora, a estratégia teria vantagens e riscos. Com uma concorrência inédita à direita, se fossem as eleições debaixo do chapéu do PSD, os democratas-cristãos não só um grupo parlamentar mais composto como evitariam o embate com a teórica crise existencial. Cereja no topo do bolo: graças às regras do Método de Hondt, os dois partidos coligados teriam mais hipóteses de eleger mais deputados.
Em contrapartida, depois do resultado traumático de 2019, com os sinais de pré-desaparecimento sugeridos pelas sondagens seguintes, não testar a força do partido em urnas poderia não só esvaziar a identidade do CDS como precipitar o processo de extinção.
Adolfo Mesquita Nunes, de resto, já denunciou essa estratégia. Tal como João Gonçalves Pereira. “Se esta direção quer transformar o CDS numa espécie de Verdes do PCP, não só é um enorme erro, como tem de merecer uma discussão interna”, diz o dirigente democrata-cristão ao Observador.
Seja como for, esse será o ponto de maior fricção entre Francisco Rodrigues dos Santos e Nuno Melo. O líder democrata-cristão já fez a sua jogada; a iniciativa está agora do lado do challenger. Queira Melo quebrar o tabu.