Título: Viagem ao país do futuro
Autora: Isabel Lucas
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 408
Sólido, surpreendente, denso, humano. Muito se poderá dizer sobre este Viagem ao país do futuro, de Isabel Lucas, que partiu de um conjunto de reportagens publicadas no jornal Público e nos veio dar este retrato extenso, em concomitância minucioso e panorâmico, de um Brasil – ou de vários.
Partindo da literatura, Lucas quis dar-nos o Brasil. Mergulhou nas obras de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Mário de Andrade, Raduan Nassar, Dalton Trevisan, Milton Hatoum, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Erico Verissimo, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, mas ainda foi aos sítios, e o papel extrapolou-se para a terra que retratou.
Ao ler o livro, tudo é surpresa. Se os conflitos do país estão ali patentes, e tanto existem no caos como na roça, também não será de olvidar os picos de generosidade de quem rouba a vida aos dias. O conforto com que a autora maneja a língua, aprimorando o jogo comunicacional com o leitor, não apenas possibilita a leitura enquanto veículo de didatismo como também o faz enquanto viagem.
É frequente questionar-se a utilidade da literatura. Nesta questão mensurável, a forma de arte perde em relação ao cinema ou à música, de quem nunca ninguém espera que cumpram a função de utensílio. Mas aqui Isabel Lucas, e note-se que o faz sem o objetivo de catequisar ninguém, mostra-nos as construções literárias como forma de dar sentido. A forma verbal já não é coisa de somenos, já que o foco de Viagem ao país do futuro nunca passa por explicações académicas ou ideológicas. Isabel Lucas mostra, o leitor vê. A prosa é fluída, e também o conteúdo flui. Lê-se para entender e descobrir. E quem lê, esteja onde estiver, dá por si no Brasil. Se o texto nunca tenta convencer ninguém, dá a sua veracidade para que as ilações existam a posteriori, sendo, por isso, muito superior a qualquer manual sobre literatura brasileira, e transformando-se, por isso, no melhor dos manuais sobre literatura brasileira. O objetivo não é o bê-á-bá nem dar lições. É mostrar de forma límpida, fazendo da literatura uma coisa viva que não respira às margens da vida, sendo antes parte integrante, num jogo de espelhos e dúvidas.
No livro, as dúvidas são omnipresentes, e é isso que o engrandece sem igual. Aliás, é logo na introdução que Isabel Lucas as manifesta sobre o alcance da sua proposta. Afinal, dar um país-continente através de alguns livros-chave parece coisa mais apta ao cliché e ao banal do que a atingir a complexidade e a verdade. Ainda assim, a forma como a autora encarou os textos e os lugares, as pessoas e as personagens, mostrando que nada acantona, serviu o propósito de mostrar que a literatura não cabe em arquétipos ou resumos, e que a vida de um país não existe numa redoma. Lucas quis “olhar sem pressa a fixar algum horizonte ou algum chão”, e é a chão que sabe este livro.
Encarando “o país amazónico sinónimo de imenso” (p. 15), a autora mostra que “a essência da viagem está nessa perseguição, na ilusão de que se pode chegar mais perto de qualquer coisa, de uma ideia de Brasil que tem a ver com mestiçagem e que comporta exuberância, dor, violência, uma crença no acaso ou numa divindade, numa salvação” (p. 15). E de tudo isto se faz este livro, já que a literatura não existe à margem e até quando não é lida deixa nos lugares a sua marca. Esses lugares aparecem em descrições cirúrgicas, que trazem sangue a fluir e carne, e são entrelaçados com o património literário, que se foca na forma como as arquiteturas, os rios e as gentes ficaram registados. Da coetaneidade ao passado de alguns clássicos, o Brasil é visto num imenso braço para o que o precede.
As convulsões políticas não vivem à margem dos grandes centros urbanos, e por vezes é até a distância que as marca. Aqui, tanto temos as situações em que o dinheiro dita a regra, em que se estuda e larga porque os reais não chegam, mas a luz persiste (“Só compensou porque tudo o que você aprende nunca é ruim” (p. 31)), como um nordeste que se desfaz de amor por Lula:
“Aqui quem fez o ser humano ser gente, ter carácter, poder andar, poder comprar um carro ou uma mota, foi o Lula. Se falar nele todo o mundo beija o chão. Aqui havia tanta gente passando fome. Hoje só não tem uma casa quem não quer. Se perguntar a qualquer nordestino, se fosse para ficar um ano no lugar de Lula na cadeia, eu iria. As pessoas humildes que queriam estudar, com Lula podiam entrar na faculdade. Antes faziam o quê? A maioria, droga. Ele pôs o Bolsa Família, mas o Bolsa Família se chama educação. (…) A minha filha quer terminar Letras e o sonho dela é Medicina. Eu não podia nem sonhar com isso.” (p. 39)
“Há um antes e um depois de Lula. Em vez de ainda andarem de jegue, anda-se de moto, as casas passaram a ter electricidade, parabólicas, e as crianças vão à escola.” (p. 39), conclui a autora.
Em jeito de reportagem, Viagem ao país do futuro toca em todo o lado. Numa prosa chã, que nos mostra o solo de onde nasce a vida, Isabel Lucas voa na hora da análise, escolhe a dedo e à mão. O tempo e o lugar aparecem de forma panorâmica a partir do macro, analisado quase ao sabor do vento, como quem não escrutina conscientemente, mas mostra as entranhas sem querer. A dimensão desta obra não apenas cumpre o propósito inicial como parece extrapolá-lo. Viagem ao país do futuro torna-se, por isso, num dos mais importantes livros publicados no Portugal contemporâneo sobre literatura, mas também sobre o Brasil, tornando-se paragem primordial para quem quiser cruzar o Atlântico.
A literatura não termina nunca e o Brasil também não, eis o que se sabe e Lucas prova. Na sua viagem, também o leitor viaja – e que quilómetros faz sem sair do sítio. Em Viagem ao país do futuro, tudo se entrelaça, chão e papel são a mesma coisa. Encarando a literatura, a autora escreveu a vida, e fê-lo com uma escrita tão desempoeirada que todo o livro sabe a fresco.