Em risco de ver o Orçamento do Estado (OE) para 2022 chumbar, a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, foi ao Parlamento tentar apelar uma última vez à esquerda para que mude de ideias antes de quarta-feira à tarde, a data da votação do OE na generalidade. A estratégia assentou em pelo menos dois eixos. Por um lado, e tendo em conta o resultado incerto que eleições antecipadas poderiam trazer ao tabuleiro político, defendendo que viabilizar este Orçamento é essencial para manter uma “governação de esquerda” — votar contra ele seria, atira, “votar contra avanços estruturais”. Por outro lado, ao argumentar que há mais pontos de aproximação (ainda que não de convergência) do que aqueles que o Bloco e o PCP reconhecem — um deles é a caducidade, onde o Governo admite ir além da suspensão até 2024.
A audição começou com Mendes Godinho a defender que este Orçamento vai “além” dos outros seis viabilizados à esquerda e que “não pode haver trincheiras”, mas sim “pontes” que “permitam manter políticas sociais de esquerda em Portugal”. Essa ideia foi repetida no final, numa intervenção em que a ministra rejeitou que o Governo esteja à procura de consensos por “temer eleições”. Fá-lo, garante, pela manutenção de uma “governação estável, de esquerda”.
Depois de, no domingo, ter acusado o Bloco de “intransigência” nas negociações — uma expressão também usada pelos bloquistas esta segunda-feira para descrever a posição do Executivo sobre o fator de sustentabilidade —, o Governo insistiu em sublinhar as aproximações à esquerda, numa tentativa de colocar sobre o Bloco o ónus da falta de consensos. Ana Mendes Godinho apelidou como “redutor” que o partido limite o debate “a um ou dois pontos” nos quais não houve aproximação “quando as nossas negociações foram muito mais abrangentes“.
Antes, Miguel Cabrita, secretário de Estado adjunto e do Trabalho, tinha recorrido a um powerpoint divulgado recentemente pelo Bloco com propostas para o OE, para argumentar que há “várias dezenas de medidas em que o Governo respondeu positivamente”. Numa delas, o Bloco propõe “recuperar as compensações por despedimento e cessação do contrato a termo”. Cabrita respondeu que o “Governo inclui esta medida na Agenda do Trabalho Digno”. A proposta do Executivo diz, porém, apenas respeito aos contratos a termo, e é apenas de uma compensação equivalente a 24 dias por cada ano de antiguidade, enquanto o Bloco tem pedido para todos os contratos e de 30 dias.
“Além desta medida o Bloco de Esquerda dizia: proteger os trabalhadores contra despedimentos em empresas com apoios públicos. O Governo já tinha adotado essa solução em 2021 e mostrou-se disponível para voltar a fazer”, frisou ainda. Outro exemplo diz respeito ao pagamento das horas extraordinárias. Miguel Cabrita refere que o Executivo apresentou uma proposta, embora não seja igual à do Bloco, que queria a reposição para os valores de pagamento pré-troika. Mas o Governo apenas aceitou fazê-lo a partir da 120.ª hora.
Nalguns casos aproximações, noutros convergência total, argumenta o Governo. “Não consigo entender a acusação de intransigência, nem posso aceitá-la, porque não podemos escolher apenas uma ou duas matérias”, concluiu Miguel Cabrita.
Governo disponível para ir além na suspensão da caducidade das convenções coletivas
Uma dessas tentativas de convergência foi na caducidade das convenções coletivas, só que longe do que querem Bloco e PCP. Os dois partidos há muito que pedem o fim da caducidade, mas o Governo apenas propôs uma suspensão até 2024. Ana Mendes Godinho revelou no debate que o Executivo chegou a transmitir disponibilidade para alargar a suspensão além desse prazo. Também não foi suficiente.
“Foi transmitida disponibilidade para, no processo legislativo, perante as várias discordâncias e dúvidas face ao modelo de arbitragem necessária, prever uma suspensão do prazo de sobrevigência, mesmo sem o limite de tempo anunciado para 2024”, disse a ministra. Essa proposta, segundo explicou pouco depois o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, não é nova e já era conhecida dos comunistas, que revelaram esta segunda-feira o voto contra o OE.
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Mas o tom do Governo para os deputados do PCP durante o debate foi diferente daquele usado para o Bloco. Por exemplo, a uma pergunta da deputada comunista Diana Ferreira sobre se o Governo estava disposto a “fazer outras opções” em matérias de salário, chegando aos 850 euros de salário mínimo “num curto prazo” (o Executivo aponta para 2025, os comunistas querem mais cedo), Mendes Godinho sublinhou a “parceria em colaboração” que levou a aumentos no ordenado mínimo nos últimos anos. Já com o Bloco, a discussão sobre o fator de sustentabilidade até levou a governante a subir o tom de voz. Essa irritação foi, aliás, visível nas várias situações em que os membros do Governo acusaram os bloquistas de não terem em conta as “duas dezenas” de matérias onde houve aproximações.
Governo rejeita mexer já no fator de sustentabilidade
Além do fim do fator de sustentabilidade, o Bloco pede o recálculo das reformas antecipadas que sofreram cortes entre 2014 e 2018, mas que, à luz das regras hoje em vigor, não teriam penalização por esse mecanismo que atualmente corta algumas pensões antecipadas em 15,5%. Nas contas dos bloquistas, estarão nessa situação 62 mil pessoas. Tendo em conta o valor médio das pensões, disse o deputado José Soeiro, “o recálculo das pensões não excederia 60 milhões de euros”, um valor que seria “comportável” na opinião do Bloco. “Ninguém percebe a intransigência com esta medida de justiça”, observou o deputado. Ao mesmo tempo, Mendes Godinho acenava negativamente com a cabeça.
Na resposta, a ministra frisou que o Governo está disponível para trabalhar a redução das penalizações a grupos específicos, mas subiu o tom para acrescentar: “Não alargar taxativamente para toda a gente eliminando o fator de sustentabilidade porque isso o que vai induzir é que todas as pessoas deixem de trabalhar porque vão ter uma reforma.” Com o aumento da esperança média de vida, argumentou Mendes Godinho, “temos de procurar o envelhecimento ativo”.
Um argumento que “não faz sentido”, diz José Soeiro, porque a idade da reforma já não é fixa, depende da esperança média de vida. Além de que já existe na lei um fator de redução das pensões de 6% por cada ano até à idade da reforma, argumenta.
Depois da insistência do deputado, Ana Mendes Godinho revelou que cerca de 10 mil pessoas com novas pensões antecipadas foram, em 2020, penalizadas com o fator de sustentabilidade, entre os 88 mil trabalhadores que pediram a reforma nesse ano. Para o Bloco, esses números mostram que o “fator de sustentabilidade não é nenhuma característica estrutural do atual regime de pensões”.
Acabar já com o fator de sustentabilidade não é uma opção para o Governo porque é, defende Mendes Godinho, essencial para que “todos os portugueses tenham uma pensão de reforma”. Mas admitiu, já na intervenção final, soluções alternativas “a longo prazo”. “Podemos sempre equacionar a longo prazo soluções alternativas mas não podemos pôr em causa direitos de longo prazo por decisões conjunturais que são as que resultam de um Orçamento anual do Estado”, afirmou.