André Valentim Almeida já não se lembra de como o artigo “Os Futebolistas Invisíveis”, do historiador Victor Pereira — publicado em 2012 na revista Etnográfica, do Centro em Rede de Investigação em Antropologia — lhe chegou às mãos. Mas depois de saber da existência de mais de 200 clubes de futebol de origem portuguesa nos escalões amadores de França, recorda-se bem do desejo de apanhar um avião e começar a filmar.
“Provavelmente já todos ouvimos falar dos dois clubes portugueses que competem no futebol profissional — o US Lusitanos Saint-Maur e o US Créteil-Lusitanos — mas esta realidade de haver 200 clubes amadores pôs-me imediatamente a pensar em imagens”, conta ao Observador o realizador que admite gostar de futebol enquanto “prática desportiva”, sim, mas sem grande fanatismo. “Eu nem sequer tenho clube. O futebol, neste contexto, pareceu-me apenas um óptimo dispositivo para conhecer a comunidade imigrante em França e o associativismo que se desenrola nesses clubes”.
Embora haja comunidades migrantes em França com a mesma expressão populacional da portuguesa, como a argelina, o número de clubes com um nome referente a Portugal é superior ao de todos os outros clubes relativos a comunidades estrangeiras — 114, segundo o artigo de 2012. “A seguir a Portugal aparece a Turquia, com ‘apenas’ 57 clubes. Depois, há 17 clubes que apresentam o termo ‘lusitano’ ou um seu derivado”, escreveu o historiador. “Alguns nomes de clubes resultam de tributos a clubes portugueses. Há nove Benficas, três FC Porto e apenas um Sporting. Cinco clubes fazem referência a uma região ou a uma localidade portuguesa (três ao Minho, um a Bragança e um a Aljustrel). Por fim, existem apenas quatro clubes que fazem referência à condição de trabalhadores dos associados.”
[um excerto do filme “Famille FC”:]
“Famille FC”, o documentário André Valentim Almeida rodou com José Vieira — “um realizador português que tem trabalhado imenso a emigração portuguesa” — ao longo de uma série de fins de semanas passados nos arrabaldes de Paris, estreou-se esta terça-feira no Cinema São Jorge, no DocLisboa e repete no dia 31, às 23h. O filme é uma coleção de vinhetas dos cerca de 15 clubes que a dupla visitou entre abril e junho de 2018, todos situados na região parisiense de Île-de-France, onde se contam mais de 100 associações desportivas portuguesas.
São pequenas histórias que tentam dar um vislumbre da origem destes clubes e das alegrias e tristezas que causam aos seus associados, bem como da relação dos migrantes com o seu país de origem e o de acolhimento, sem esquecer as relações com os descendentes. “Os mais novos que nasceram lá não conhecem bem a cultura dos seus pais. E nem sempre se reveem nas tradições folclóricas ou na cultura dos ranchos. Por isso o futebol acaba por ser uma língua franca com a qual novos e velhos conseguem comunicar. Há rituais e inspirações comuns”, explica Almeida. Inspirações como Cristiano Ronaldo, cujo nome se encontra nas costas de quase todos os miúdos em dia de jogo, recorda o realizador, cujos filmes foram exibidos em diversos festivais como o Doclisboa (em 2014, “A Campanha do Creoula” venceu o Prémio da Selecção Doc Alliance), IndieLisboa, Visions du Réel, FIDMarseille, Jihlava, DOK Leipzig, CPH:DOX, DMZDocs, MoMA, Carpenter Center for Visual Arts e TEDx Brooklyn.
“Tudo somado, foram 20 e tal dias de rodagem”, conta André Valentim Almeida, que filmava apenas aos fim-de-semana, que é quando os clubes, sendo amadores, despertam para a vida: no intervalo do trabalho. “As limitações de tempo e de orçamento quando se filma no estrangeiro levaram a que a rodagem fosse feita no tempo de uma repérage, apenas com duas pessoas, eu e o José Vieira”. Estas contingências acabaram por dar ao documentário uma linguagem mais próxima da reportagem televisiva do que de cinema documental, como o próprio admite. “Deslocávamo-nos a um clube que não conhecíamos, durante uma celebração ou um torneio, e começávamos de imediato a filmar. Não havia tempo a perder.”
A memória que Almeida guarda do período de rodagem não foi, contudo, a de ter estado em Paris. “Em todos estes dias sentia que apanhava o avião de Lisboa até uma aldeia transmontana — era essa a sensação.” Que explica com uma tentativa de os portugueses tentarem recriar o país de onde saíram nesses clubes, no fundo um espaço de pertença onde se sentem bem.
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▲ “Em todos estes dias sentia que apanhava o avião de Lisboa até uma aldeia transmontana — era essa a sensação", diz-nos André Valentim Almeida
“Em todos os clubes ouvia dizer que isto era uma família. Invariavelmente, em todos”, conta, explicando como se tornou muito fácil e evidente a escolha de “Famille FC” para título do documentário. Embora tenha feito o filme uma década depois do trabalho de campo que originou o artigo “Os Futebolistas Invisíveis”, Almeida ressalva que a realidade com que se deparou foi tal e qual a retratada pelo historiador. “O filme é uma espécie de nota de rodapé do artigo.”
O título do artigo vem de a comunidade portuguesa não gostar de falar publicamente, de se expor. “Há uma certa cautela sobre o que estão a fazer. Enquanto que o futebol domina, querem é ganhar”, diz. Não o verbalizam, mas é um sentimento que o realizador encontrou no desejo de quererem partilhar as histórias do clube. “Isso é sintoma da falta de visibilidade. Parece que é a primeira vez que alguém lhes estava a dar atenção.”
A tese do artigo é que a existência de mais de 200 clubes demonstra a importância que o futebol tem para os portugueses em França, e de como ajudou os migrantes a adaptarem-se a “um ambiente urbano e à sociedade moderna francesa”, ao mesmo tempo que o desporto se tornou sinónimo de transmissão de uma identidade portuguesa de pais para filhos. Mas ao longo dos anos — recorde-se que a emigração para França tem início nos anos 50 — os clubes portugueses foram abrindo portas não portugueses, da mesma maneira como os clubes franceses abriram-se aos portugueses e luso-descendentes. O exemplo da passagem de Lilian Thuram por um clube português ilustra este processo, e não podia deixar de aparecer em “Famille FC”.
No seu livro de memórias, o ex-jogador da Juventus e do Barcelona, Campeão do Mundo em 1998 e da Europa em 2000, conta como o clube português de Fontainebleau era o preferido dos jovens do bairro social onde vivia na altura com a mãe e os quatro irmãos. “A maioria dos filhos de imigrantes que jogavam futebol escolhiam o clube português: ‘nenhum deles queria jogar nos outros dois clubes da povoação. Uma cumplicidade ligava-os aos portugueses de Fontainebleau. Uma cumplicidade que todos partilhávamos porque a comunidade portuguesa trazia um extraordinário tom festivo aos jogos. O cheiro das sardinhas assadas, das salsichas preenchia o ar; as bandeiras com as cores portuguesas ondulavam; os cantos eram repetidos até a exaustão. Nós estávamos em Portugal e eu próprio era português durante algumas horas’”.