Começamos por ouvir teclados, o som de um avião a passar, uma batida eletrónica que faz menear os ombros. Depois entra a percussão e descolamos para um universo que não estranhamos ser da Cuca Monga — editora independente de música, sediada em Lisboa. Eis que somos confrontados, por fim, com um solo de guitarra espampanante, lembrando-nos que o kitsch passou a ser cool. Por esta altura já ninguém tira o cinto: a viagem a bordo da Atalaia Airlines acabou de arrancar.
Estamos apenas na primeira faixa de Atalaia Airlines, o primeiro disco (homónimo) da banda portuguesa que chega esta sexta-feira, 18 de novembro — e que será apresentado ao vivo neste mesmo dia no festival Super Bock em Stock, em Lisboa, mais concretamente no Palácio da Independência (Avenida da Liberdade), às 22h.
A audição do álbum é uma viagem que se faz sem turbulência. À segunda faixa, “Ondas FM1”, ficamos a conhecer uma das personagens principais deste enredo musical. Chama-se Vitorino Saudade e de umas quantas em quantas canções, quase sempre duas ou três, ouvimo-lo comentar o que se acabou de escutar, apresentar o que vem a seguir (“o fresco álbum dos Atalaia Airlines”, a “primeira leva de canções”), pedir “com licença” ou deixar-nos a seguinte mensagem: “Abracem-se enquanto esperam pelo colapso dos mercados financeiros, sorriam enquanto a vida não espera”.
Quando não estamos a ouvir a locução de Vítor Saudade, personagem que é meio radialista meio co-piloto, estamos a ouvir cantigas que surfam o azeite sem pudor, que deslizam sem medo por solos de guitarra épicos, saxofones à anos 80 e uma espécie de funk-pop eletrónica, vestida de seda lustrosa, mas que também incorpora ritmos jazzísticos que denunciam bom gosto estético.
Os Atalaia Airlines são, no fundo, três rapazes que moram em Lisboa: Afonso Sêrro, Humberto Dias e Pedro Puccini. E neste caldeirão musical que é o álbum de estreia homónimo, o principal referente que tiveram como inspiração foi um movimento estético chamado “city pop”, que apareceu no Japão no final dos anos 1970 e se tornou mais popular nesse país nos 80’s.
Não é fácil definir o que é o “city pop”, mas há algumas características que nos ajudam a desvendá-lo. Desde logo, era um pop inclusiva e abrangente nos géneros musicais de que se alimentava, que podiam ir do funk (mais predominante) ao soft rock, de um psicadelismo “moderado” à disco, do boogie ao jazz de fusão e ao R&B.
Talvez o city pop não fosse tanto um movimento estético, aliás, quanto uma certa atitude cosmopolita, “urbana”, de uma série de músicos e bandas do Japão que cresceram a ouvir a música tradicional do seu país mas também a música ocidental dos anos 60 e 70. E que, depois disso, ousaram criar uma mistura nova de estilos musicais, simultaneamente nipónica e ocidental, muitas vezes tendo um “locutor” ao longo do disco que ia comentando as músicas — um Vítor Saudade com caracteres japoneses.
É claro que quem ouvir o disco de estreia dos portugueses Atalaia Airlines lançado no ano dois mil e vinte um, não precisa de saber nada sobre city pop. Pode só apreciar o bom descaramento com que, com um saxofone desavergonhado, estes três rapazes arrancam “Arma Mortífera”, música que tem Iguana Garcia como convidado. Ou surpreender-se com a colaboração (intitulada “Pacific Ocean”) com uma artista japonesa chamada Yuuko — já contamos a história.
Se isto não chega, há mais trunfos. Desde logo, os devaneios instrumentais eletrónicos e jazzísticos do álbum, com teclados e percussões pop-psicadélicas, em alguns casos (como em “Falcon”) levando o ouvinte numa viagem sci-fi, noutros (como em “Modo Avião”) transportando-o para paisagens mais tropicais. Mas também, e talvez sobretudo, dois singles a não esquecer: “Niteflix”, mais uma prova do argúcia humorística do olhar e da escrita de Mike El Nite, e sobretudo “Primeira Classe”, a canção que apresentou os Atalaia Airlines ao país e que, à boleia de David Bruno, nos narra as vantagens de não voar em económica:
Eu só viajo em primeira classe
Atrás de mim quem vem é dégueulasse
Brindo com o champagne et le bagaçe
Em primeira classe, em primeira classe
Servem-me o que eu peço
Tapam-me quando adormeço
Se eu peço lampreia, eles vão buscar
Servida à bordalesa lá no ar
Não sabemos em que aviões voa David Bruno, mas não parece haver impossíveis nesta transportadora aérea. E se alguém julga que lampreia à bordalesa é o máximo que se consegue neste voo em primeira classe, engana-se:
Uma bacia d´água das termas pa’ por os pés
Umas pantufas da serra das estrela e canapés
Um baralho de cartas sem oitos, noves e dez
Em primeira classe, em primeira classe
Um casaquinho bem quentinho em ponto tricot
Um bibelot
Um edredon
Um bem-u-ron
Moet Chandon
Dom Pérignon
O humor nas cantigas, também nítido em “Niteflix”, é a arma dos Atalaia Airlines: deteta-se na estética visual, numa espécie de dança lânguida musical com o kitsch e o (suposto) foleiro, na impressão que se fica ao ouvir de que estes são três moços que gostam de escangalhar-nos a pose sóbria e séria. “Ironia, humor, diversão: tudo isso faz falta. Temos de nos rir de nos próprios”, explicam.
Dois alentejanos e um lisboeta entram num bar: “O Avião”
Para um grupo de rapazes ainda sem qualquer disco editado, e para uma banda ainda sem grande notoriedade, conseguir ter no primeiro disco convidados como David Bruno e Mike El Nite pode ser surpreendente. Mas apesar de Atalaia Airlines ser um projeto novo, o trio que o compõe já se movia antes no circuito musical indie português.
Humberto Dias, que serve de porta-voz para explicar-nos de onde vieram os Atalaia Airlines, toca também com alguns músicos nacionais com discos editados, como Jasmim e Alek Rein, fazendo também parte de outras duas bandas — uma delas os Hércules, que Pedro Puccini também integra e de que durante um curto período de tempo Afonso Sêrro também chegou a fazer parte.
Nascido em Castro Verde, no Alentejo, Humberto entrou na banda filarmónica da sua terra aos 13 anos e conheceu Pedro Puccini não muito mais tarde, ainda durante o ensino secundário. Não frequentavam a mesma escola, não eram da mesma localidade (Pedro nasceu na Cuba portuguesa) mas tinham amigos em comum e são do mesmo ano, 1995, sendo Humberto poucos meses mais velho: já tem 26 anos, ao contrário de Pedro que só comemora o 26º aniversário em dezembro.
O que tudo isto significa é que Pedro Puccini e Humberto Dias conhecem-se há quase dez anos. A relação dos dois com Afonso Sêrro é mais recente — conheceram-no, conta o antigo estudante de Filosofia Humberto, “no circuito musical”, quando Afonso estava a terminar uma licenciatura em ciências musicais — mas foi como trio, e durante algumas tardes e noites boémias, que imaginaram uma nova aventura musical a três.
O nome dado à nova banda tem uma explicação: serve de homenagem ao poiso habitual do trio, ao local onde ainda à mesa de café criaram os Atalaia Airlines. Esse local era o restaurante-bar O Avião na Rua da Atalaia, no Bairro Alto, em Lisboa. “Houve uma altura, aí em 2018, 2019, que íamos lá muito. Ainda vamos mas nessa fase íamos quase todos os dias. A hipótese surgiu em conversa, mas no início em tom de brincadeira”, conta Humberto Dias.
O que raio terá O Avião da Rua da Atalaia de especial, para ter levado Afonso, Pedro e Humberto a passar lá tantas horas? Humberto explica: “É um dos poucos sítios no Bairro Alto que consegue reunir várias pessoas da música underground portuguesa neste momento. Alias, não só do underground. O Chico da Tina para lá. O Costanza também, uma banda nova chamada Celso, o Bejaflor… A mística d’O Avião é a simplicidade, a humildade. É um sítio ‘à antiga’, a pessoa que atende é o proprietário ou familiar do proprietário, há muito poucos lugares para se sentar e é muito português ficar cá fora a beber uma cerveja”.
Neste restaurante-bar do Bairro Alto, as conversas sobre uma nova banda que tinham começado como brincadeira viraram coisa séria. Tudo começou a mudar quando o trio conseguiu u apoio monetário da GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas para a composição de um álbum.
Depois do apoio à criação, o trio foi convidando pessoas. David Bruno foi o primeiro e vários seguiram-se, como João Sala (da banda Ganso), Mike El Nite e a japonesa Yuuko, que colaborou à distância. O trio nunca conheceu a nipónica e sabe muito pouco sobre ela: “Só sabemos que Yuuko é nome artístico, não é o nome dela”, dizem. Encontraram-na depois de “uma busca de um ano numa rede online de anúncios de músicos”. A busca não era simples: os Atalaia Airlines queriam “alguém japonês que conseguisse escrever uma letra, gravar e ainda fazer segundas vozes” numa canção.
A composição e gravação dos temas demorou: em vez de se fecharem num estúdio com canções prontas a serem gravadas durante alguns dias, o método adotado por muitas bandas, os Atalaia Airlines foram delineando o álbum com calma até encontrarem uma identidade sonora para o disco. Humberto Dias arrisca dizer que “esse fio condutor” encontrado passa “não só pela linguagem jazz por parte do Afonso, que é a pessoa que produz mais e dá muitas ideias de som, como pelo city pop”.
Como nenhum dos três cantava, foi preciso aproximar algumas composições da “estrutura clássica de uma canção” e chamar vários convidados para as cantarem, modelo que dizem ter vontade de repetir. Mas a música instrumental não é aqui um enfeite. É, ao invés, a base que suporta o grupo.
Para o futuro, os Atalaia Airlines já têm alguns planos. A curto prazo, o objetivo é “continuar a promover o disco o melhor possível”, editar em vinil “no início do próximo ano” e conseguir “concertos de apresentação fora de Lisboa, mas sempre num formato que consiga respeitar minimamente o que conseguimos fazer em estúdio”. O que significa isto? “Nunca conseguiremos ter os convidados todos, mas queremos tentar um meio termo que passa por nem sermos só os três em palco, nem termos todos os convidados a cada atuação. Queremos também ter um jogo de luzes interessante, ter um técnico próprio… trazermos connosco pessoas que são muitas vezes invisíveis mas que fazem toda a diferença num concerto”.