O Real Madrid anunciou nos últimos dias a ampliação da linha de financiamento para obras que não estavam inicialmente previstas na remodelação do Santiago Bernabéu, num novo empréstimo de 225 milhões de euros a 27 anos com uma taxa de juro fixa de 1,53%. Mais do que isso, como ressalvou o clube merengue em comunicado, nunca no mundo do desporto foi feito um acordo com estas condições, com a amortização a ter início apenas a partir de 30 de julho de 2024. O que tem isto a ver com o Barcelona? Diretamente, nada. De forma indireta, tudo. E enquanto os catalães assistem a estas movimentações do maior rival, olham para o espelho e aquilo que veem é a urgência de encontrar um comprador da dívida, ou de parte da mesma, que ascende aos 1,35 mil milhões de euros. Os caminho são opostos. Nas finanças e na parte desportiva.

Como destaca o El Español num texto de análise que parte da eliminação dos blaugrana da Champions pela primeira vez em 18 anos, os dois clubes que andam intrinsecamente juntos a todos os nível viram um fosso nascer, desenvolver-se e aumentar a cada semana nos últimos tempos. E isso acaba por adensar ainda mais a crise que se vive na Catalunha, uma crise que pode ser resumida a um desabafo de Thomas Müller, dianteiro do Bayern que inaugurou o marcador no triunfo por 3-0. “Quando vi este grupo nunca pensei que eles acabassem assim. Eles têm bons jogadores a nível técnico e tático mas o Barcelona é uma equipa que não consegue manter intensidade no seu jogo e isso é necessário para ter sucesso no futebol ao mais alto nível. Nós aproveitámos isso…”, comentou o internacional alemão falando ao DAZN.

Foi isso também que o técnico Xavi Hernández, que chegou há pouco tempo ao clube na sua nova função de treinador depois de duas décadas com dezenas de títulos como jogador e capitão, manifestou na viagem de regresso de Munique a Barcelona ao presidente Joan Laporta e o vice Rafa Yuste: equipas como o Bayern estão alguns patamares acima dos culé nesta fase e a prioridade do clube deve passar por refazer todo o seu projeto desportivo. No final, como escreve o Sport, terá ficado uma certeza deixada pelo técnico olhando para o futuro: “No espaço de um ano estaremos ao mesmo nível do Bayern”. Mas como?

“Eles foram melhores, foram superiores. Tentámos pressionar alto, tentámos roubar a bola ao Bayern, mas eles conseguiram fazer tudo na mesma. Quisemos dominar e acabámos dominados. É a dura realidade… Já disse aos meus jogadores que vai começar uma nova época, que devemos exigir mais de nós próprios e que este jogo deve ser um ponto de inflexão para trabalharmos juntos, mudar a dinâmica e alterar muitas outras coisas. O que me afetou foi o facto de não termos competido. A Liga Europa é a nossa atual realidade e não podemos permitir isso, mesmo que agora tenhamos de enfrentar a competição com toda a dignidade do mundo. Sou culé de sentimento, precisamos de mudar já. Queremos começar uma nova etapa para levar o Barcelona onde merece. Estou chateado, estou f***** por enfrentar a realidade mas é a que temos. Hoje vamos começar do zero. Pensava que ia ser diferente. Não foi…”, disse Xavi após o jogo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os sorrisos de Lenglet com Lewandowski no final da partida foram muito criticados pelos adeptos, ao mesmo tempo que as lágrimas de Gavi quando foi substituído mereceram rasgados elogios. Todos percebem que uma parte da redenção passa por recuperar o que é o ADN Barça – aquilo que Xavi terá dito no balneário que alguns não sabiam o que era. Todavia, é percebendo o que se passou que se fica mais próximo de mudar.

Os problemas financeiros e a má gestão que foram a raiz de todos os males

É apenas uma história, uma pequena gota, mas não deixa de ser sintomático perante a realidade que existe hoje no Barcelona: tão ou mais importante do que a questão desportiva e até de prestígio internacional, os responsáveis catalães olhavam para o encontro de Munique com 20,2 milhões de euros na cabeça. E que valor era esse? O equivalente à passagem aos oitavos e, mais tarde, aos quartos da Champions, conforme estava orçamentado para 2021/22 (havendo ainda os 2,7 milhões de euros possíveis por uma vitória frente ao Bayern). Isto numa época em que, recuando uns meses, Kun Agüero só conseguiu ser inscrito na Liga depois de jogadores como Piqué acordarem baixar o seu salário para ficar enquadrado nos pressupostos financeiros.

O Barça não viveu acima das suas capacidades – viveu muito acima das suas capacidades, com esse toque a roçar o maquiavélico de ter deixado de ser um burguês sem dinheiro num ano de 2020 onde foi o clube que mais receitas conseguiu gerar. Ao todo, a auditoria ao universo blaugrana aponta para uma dívida de 1,35 mil milhões de euros (617 milhões a bancos, 389 milhões a jogadores, questões judiciais ou direitos televisivos) com 451 milhões de saldo líquido negativo, salários equivalentes a 103% das receitas totais do clube quando o limite imposto pela própria Liga era de 70% e números ainda mais assustadores como o aumento da massa salarial em 61% em quatro anos. Por exemplo, Messi, Griezmann, Coutinho e Dembelé custavam mais de 300 milhões por temporada. Outro caso prático: já na parte final da era Josep Maria Bartomeu, o clube pagava mais 10% a 20% nas transferências porque depois de chegar a acordo não tinha verbas para cumprir o que estava contratualizado e abria novas linhas financeiras de crédito.

A saída de Lionel Messi, da rescisão sem acordo ao final do contrato

Ganhou tudo o que havia para ganhar, bateu todos os recordes que havia para bater, quebrou mil e um registos desde que se estreou na equipa principal. Lionel Messi podia não ser um Messias suficiente para evitar todos os momentos maus da equipa, como se viu na goleada sofrida frente ao Bayern nos quartos da Champions de 2019/20, mas era uma reserva do Barça. Desportiva, anímica, emocional. No entanto, aquilo que aconteceu desde o verão de 2020 com o argentino mostrou também a falência do clube, a ponto de, nessa fase mais atribulada de uma rescisão que não chegou a acontecer, parecer estar acima do próprio clube.

No clube desde os 11 anos, quando os responsáveis blaugrana se responsabilizaram pelo tratamento a um problema hormonal que condicionava o seu crescimento, Lionel Messi foi o expoente máximo em campo de tudo aquilo que o Barcelona sempre quis ser: um artista que não sabia jogar mal, um nome que era quase uma marca, um produto da formação. Provavelmente só Johan Cruyff teve um papel tão ou mais relevante na história dos catalães do que o número 10. O último ano em Camp Nou foi o assinar por baixo da falência de todo um clube, da carta de rescisão enviada da Argentina à permanência entre críticas a Bartomeu, dos golos que ia marcando às discussões que ia tendo com elementos da estrutura, da proposta de renovação que nunca chegou à apresentação no PSG. O último símbolo da Geração de Ouro dizia adeus, com tudo aquilo que significou para uma equipa que ficou também refém do seu maior abono durante 17 anos.

A falta de opções (válidas) no plantel e o sub-rendimento de algumas referências

O atual plantel do Barcelona é o espelho de duas realidades distintas que se cruzaram no seu pior sentido na última janela de transferências: por um lado, as condicionantes financeiras fizeram com que o clube estivesse muito limitado na escolha de opções, como se viu na rábula do avançado no último dia de mercado com a chegada por empréstimo de Luuk de Jong do Sevilha depois de tentativas finais (e quase desesperadas) de João Félix, Cavani e Bakambu; por outro, as apostas mais enquadradas para um sistema com o qual o próprio ADN Barça não combina mas que Ronald Koeman considerava ser o que melhor se adequava ao pouco que conseguiria ter e ao que acabou por chegar no final de agosto entre o sai e o fica.

O que falta? Um pouco de tudo. À exceção da baliza, onde Ter Stegen é o indiscutível e Neto o número 2, todos os outros setores estão condicionados às opções existentes. Por exemplo, se Jordi Alba se lesiona, não há um substituto direto; entre vários jogadores já utilizados nessa posição, e tomando em linha de conta que Dest tem sido aposta sobretudo como ala, não existe um lateral direito de raiz; Gavi e Nico González foram promovidos da equipa B para colmatar a falta de médios (e têm sido dos melhores quando são chamados); e o recente problema cardíaco de Kun Agüero que vai afastar o argentino das opções por largas semanas ou mesmo a título definitivo limitou ainda mais o ataque. É por isso que Ferran Torres surge como prioridade.

As lesões (com culpa própria à mistura) que afastam as duas grandes figuras

Não é um mal exclusivo do Barcelona e pode, de certa forma, justificar-se com os calendários densos que as principais equipas europeias têm enfrentado. Contudo, os catalães têm registado várias ausências por lesão, sobretudo dos dois jogadores que mais falta fazem à equipa para aumentar o rendimento ofensivo e coletivo dos blaugrana: o médio ofensivo Pedri, recente vencedor do prémio Kopa, e o avançado Ansu Fati.

Além da falta que fazem ao plantel, Pedri e Ansu Fati, por razões distintas, explicam como o insucesso dos catalães pode chegar de vários quadrantes. No caso de Pedri, e depois de uma longa época pelos culé e dos encontros nas seleções A e Sub-21 nas fases finais dos Europeus, o clube “cedeu” ao pedido do jogador em participar também nos Jogos Olímpicos, deixou que terminasse a temporada com um total de mais de 70 jogos e não trabalhou um plano correto de recuperação que prevenisse todos os problemas de cariz muscular que têm afetado o jovem médio, que voltará apenas em 2022. Em relação a Fati, o avançado voltou depois de uma longa ausência por grave lesão, marcou, mexeu com a equipa mas não foi também gerido a nível de utilização de minutos, voltando a ficar de fora por questões físicas e desfalcando (mais) o ataque.

A postura de burguês sem fundos que chegou há cinco anos ao campo

A conferência de imprensa de Xavi depois da eliminação da Champions funcionou quase como um choque com uma realidade que todos tinham noção que existia mas que nunca ninguém no clube quis assumir – à exceção de Ronald Koeman, que por mais do que uma vez alertou para os degraus abaixo onde se encontrava este Barcelona. E se dúvidas existissem, basta olhar para os resultados desde 2016/17 nos principais duelos para perceber como a realidade estava bem mais visível do que poderia aparentar.

Desde a goleada sofrida no Parque dos Príncipes por 4-0 em 2016/17, que todos apagaram pela remontada épica em Camp Nou por 6-1 naquele que foi um dos jogos mais marcantes de sempre da Champions, houve mais uma derrota por 3-0 em Turim diante da Juventus na primeira mão das meias dessa época, um 3-0 em Roma em 2017/18 que anulou a vitória por 4-1 na primeira mão dos quartos, o 4-0 em Liverpool depois do 3-0 na Catalunha nas meias da Champions de 2018/19, o inesquecível 8-2 do Bayern em Lisboa nos quartos de 2019/20, as derrotas caseiras com Juventus (0-3) e PSG (1-4) em 2020/21 e os recentes desaires na presente edição da Liga dos Campeões frente ao Bayern (em casa e fora) e ao Benfica. Ou seja, a questão do falhar na principal competição europeia é tudo menos uma coisa desta época. Diferença? Agora, assume-se…