Ao todo, o procurador Francisco Teodósio Jacinto demorou 39 horas, ao longo de duas semanas e doze sessões, no Tribunal de Monsanto, a discorrer as alegações finais do Ministério Público e a expor o caso contra a organização terrorista liderada por Otelo Saraiva de Carvalho — era uma pena que toda aquela informação se perdesse, reconheceu recentemente ao Observador Cândida Almeida, procuradora da fase de instrução do processo.

“Pensámos que era bom que as pessoas soubessem, porque aquilo era realmente uma situação única que tinha acontecido no país e era importante as pessoas perceberem o que é que se tinha passado, o que é que se tinha provado. Portanto fizemos as alegações, juntámos as provas, juntámos fotografias das armas, e o que é que tinha sido provado, como é que se tinha sido provado”, recordou a antiga Procuradora-geral adjunta que, com Jacinto Vicente, auxiliou Teodósio Jacinto no Monsanto, e o procurador-geral adjunto António Rodrigues Maximiniano, seu marido, que morreu em 2008, completou o quarteto de procuradores responsáveis pelo primeiro processo das FP-25, que entre outubro de 1985 e maio de 1987 julgou 73 pessoas pelo crime de associação terrorista.

Com as alegações passadas a limpo e um livro de mais de mil páginas nas mãos, os magistrados fizeram uma proposta ao procurador-geral Cunha Rodrigues: se Mário Raposo, então ministro da Justiça, lhes desse autorização, mandavam imprimir a obra para ser distribuída como anexo do boletim do Ministério da Justiça, que então era enviado para todos os magistrados, com a transcrição de leis e decisões importantes. “Na altura o ministro disse que sim, todo entusiasmado”, recordou Cândida Almeida, numa entrevista concedida ao Observador, no âmbito de uma grande reportagem sobre as FP-25, que será publicada em breve. “Houve uma edição de mil. Com a autorização do ministro, o procurador-geral deu quatro livros a cada um de nós. E depois ficámos à espera que fosse publicado. No dia seguinte, o senhor procurador-geral recebeu a chamada do Ministério a dizer que não, que era proibido, que não ia ser divulgado. Acho que deve ser o único livro proibido depois do 25 de Abril.

“Para minha surpresa, o ministro telefonar-me-ia uns dias depois, anunciando-me que a publicação devia ser imediatamente retirada do mercado”, recordou o próprio Cunha Rodrigues em “Memórias Improváveis: os longos anos de um procurador-geral”. “O motivo era um artigo que Luso Soares tinha escrito num vespertino a criticar fortemente a publicação. Entre outras coisas, alegava que nem no fascismo se vira uma coisa destas!”, continua o ex-procurador-geral, que conta uma versão ligeiramente diferente da de Cândida Almeida: não só o livro chegou a ser colocado à venda como até chegou a conhecer um pico de procura “quando se soube da ‘censura’“.

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Para além de constar do Processo das FP-25, existem exemplares do livro “Caso FP-25 de Abril: Alegações do Ministério Público” na Biblioteca Nacional e na Torre do Tombo. E também nas bibliotecas particulares de pessoas próximas do processo, como Cândida Almeida — que até hoje acredita que a obra poderá ter sido proibida por pressões dos arguidos do processo: “Na sala, os arguidos nas alegações finais estavam a dizer que não ia sair nenhum livro, porque eles não permitiriam que saísse um livro com as alegações. E realmente não saiu” —, ou Manuel Castelo-Branco, filho de Gaspar Castelo-Branco, diretor-geral dos Serviços Prisionais assassinado a 15 de fevereiro de 1986 por operacionais das FP-25.

Foi Manuel Castelo-Branco, que em fevereiro deste ano publicou um ensaio sobre os 25 anos da amnistia aos condenados do processo do grupo terrorista no Observador e foi consultor de Nuno Gonçalo Poças no processo de pesquisa de “Presos por um Fio: Portugal e as FP-25 de Abril”, quem decidiu disponibilizar na Internet as 1.053 páginas do livro.

“Hoje em dia restam muito poucos, o livro foi recolhido, devem ter sobrado uns 30 exemplares no máximo. Eu tenho um, pedi ajuda à Zita Seabra, que o digitalizou, falei com o Carlos Guimarães Pinto, e disponibilizei-o na plataforma +Liberdade“, explicou ao Observador o filho do ex-diretor-geral das prisões, que já este ano foi notícia, depois de apresentar uma queixa-crime contra o ex-operacional das FP-25 José Ramos dos Santos. “Achei que era uma plataforma adequada, uma vez que este é um tema que tem muito a ver com a Liberdade, a sua privação e a forma como, apesar de tudo, foi possível acabar com o terrorismo porque tínhamos uma Policia Judiciária e um Ministério Publico eficazes e juízes corajosos que foram capazes de concluir um julgamento com imparcialidade, apesar das várias pressões do poder político.”

Manuel Castelo-Branco, na altura com apenas 17 anos, foi quem encontrou o pai, assassinado com dois tiros na nuca, no passeio à porta da casa onde moravam, na Rua de Buenos Aires, em Lisboa. Quando, anos mais tarde, a amiga e então jornalista Cristina Ferreira de Almeida lhe ofereceu o livro que agora tratou de digitalizar, Manuel Castelo-Branco não teve coragem de o abrir, muito menos de o ler. “Esteve 20 anos na minha prateleira sem lhe conseguir tocar ou sequer abrir uma página. Fi-lo pela primeira vez em 2019,  quando o ‘Governo Sombra’, de João Miguel Tavares, Pedro Mexia e Ricardo Araújo Pereira, decidiu convidar o Otelo, no âmbito de um qualquer 25 de Abril.  Na altura, lavrei o meu protesto no Observador com um artigo, onde me socorri das informações contidas no livro”, recorda.

Para já, “Caso FP-25 de Abril: Alegações do Ministério Público” pode ser descarregado em formato PDF na biblioteca online da organização +Liberdade, não estando ainda ativa a funcionalidade de pesquisa no texto — manifestamente útil, sobretudo tendo em conta a dimensão do livro. “Mas temos alguém a trabalhar nisso”, assegura Manuel Castelo-Branco. A obra também está disponível no site da Alêtheia, a editora de Zita Seabra.