“Que som faz um barco com motor fora de bordo a 200 km/hora? (Pausa.) Twof… Twof… Twof…”
Paolo Sorrentino é daqueles que não engana. Não será um Maradona, mas talvez um Roberto Baggio. Desde a primeira vez – em 2004, com “As Consequências do Amor” e logo ali com o seu ator-fétiche Toni Servillo – que lhe vimos o toque de bola. É um apaixonado e, como quase todos os apaixonados, também um desiludido. Está sempre à procura da beleza, da perfeição, do deslumbre, e por isso esbarra na fealdade, na monstruosidade, no grotesco. É o eterno adolescente e, como tal, dá-lhe pouco para a subtileza; antes, distorce, exagera. Vai lá com a câmara em cima do ator para lhe deformar a face ou o corpo; usa e abusa das ultra-grande-angulares para deformar os espaços e torná-los ora absurdamente profundos, ora absurdamente fechados, como na sala dos espelhos da feira popular. Quer fazer troça e venerar; usar o cinema para passar sobre o pântano pisando o infinitamente pequeno, até chegar à outra margem, onde nos aguarde um instante de espanto, de plenitude.
“Não, tu ainda tens esperança”, deteta mais ou menos assim ao jovem Fabietto (Filippo Scotti) o mestre Antonio Capuano (Ciro Capano). “Vais querer fazer filmes recompensadores”. Sim e não. Sorrentino carrega essa contradição do cético que ainda acredita, mas “A Mão de Deus” (dispoonível na Netflix) dá-lhe mais para a dor do que o habitual, mais para a verdade, e talvez por isso, no fim, não tenha grandes respostas para nos oferecer. É o seu momento “8 ½“, com qualquer coisa de “Amarcord”. O vigoroso em tom menor. Excessivo, ma non troppo.
[o trailer de “A Mão de Deus”:]
“É Stata La Mano di Dio” (o título original é mais bonito: “Foi a mão de Deus” – tomando para ele a formulação mais completa de Diego Armando Maradona após a célebre vingança de Inglaterra, nos quartos-de-final do México ‘86) traz Sorrentino de regresso à Nápoles natal, no tempo em que o impossível se preparava para acontecer: Dieguito ia aparecer aos napolitanos. Naquele caos e naquela beleza, naquela maneira orgulhosa de ser muito só deles e de querer ser como toda a gente, de santos e traficantes, sacra e profana, sem contradição. Se é autobiográfico? Sorrentino diz que a realidade é sempre o ponto de partida – depois, o que fazemos é melhorá-la.
Na família Schisa (numa tradução literal: “estridente”), Saverio (Servillo), que é comunista e trabalha no banco, partilha confidências sobre o negócio que poderá trazer El Pibe para a Campânia, enquanto esconde uma longa relação extra-conjugal de Maria (Teresa Saponangelo), que por sua vez prega partidas à cunhada que acha que vai fazer de Callas no próximo filme de Zeffirelli. Entre os filhos, Fabietto sonha ser realizador e Marchino (Marlon Joubert) ator (Fellini está na cidade para um casting para figurantes e ele não vai faltar); mas juntos sonham com a monumental tia Patrícia (Luisa Ranieri), que chegou tarde a casa porque diz que viu São Gennaro, padroeiro de Nápoles, e o Pequeno Monge, mas o marido grita que ela anda é a prostituir-se outra vez. Em conjunto, mais a matriarca que come mozzarella enrolada num casaco de peles como um urso não devoraria uma coxinha de frango, e a baronesa carente do andar de cima, e o advogado desiludido e todos os outros, esperam a chegada da irmã solteirona para descobrir que namorado, enfim, arranjou.
Para quem já conhece os fétiches e maneirismos de Sorrentino, “A Mão de Deus” é, muitas vezes, pouco ou nada surpreendente. A fanfarra de personagens, talvez até ainda mais do que noutras ocasiões, não serve, na sua maioria, para absolutamente nada senão alimentar um artifício de folclore e pretensa loucura e, depois, sumir-se do filme como uma ameaça de invasão dos bárbaros que, afinal, nunca estiveram às portas da cidade. Mas o acontecimento crucial da história liberta-a para se concentrar, finalmente, no seu protagonista, Fabietto, tornando-a enfim no que verdadeiramente é: um bildungsroman, um “coming of age”, pincelado com o que Sorrentino tem de melhor: a audácia do seu gesto quando volta a crer na beleza.
O maior ganho do regresso a Nápoles é que trouxe o mar para dentro do cinema de Paolo Sorrentino. “A Mão de Deus” é melhor sempre que está no mar ou junto a ele. Como o mergulho que lava a vida e a põe de novo a zeros. Como a tia Patrícia estendida ao sol. Como a fuga de barco da sujidade do porto para o brilho de Capri, aos comandos de um traficante (Biagio Manna) chamado Armando (não pode ser coincidência). “Que som faz um fora de borda a 200 km/hora? (Pausa.) Twof… Twof… Twof…” O som da fuga, da liberdade, do sonho da perfeição.
O grande filme de Sorrentino ainda está por vir. Este, por enquanto, ainda foi um pouco com a cabeça e um pouco com a mão. Mas foi golo. Claro que foi golo.