Uma série de más coincidências acabaram por ser fatais. Um comboio que seguia sete minutos atrasado, uma carruagem que permitia a abertura manual das portas mesmo não estando numa estação, e uma noite escura, sem iluminação por perto, que levou um casal a guiar-se pelos carris para chegar a casa. Certo é que a CP sabia que as portas dos comboios abriam em locais indevidos, mas o problema continuava por resolver no dia da morte de Sebastião Tavares de Pinho, antigo vice-reitor da Universidade de Coimbra, a 23 de janeiro de 2020. A conclusão é do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF), num relatório citado pelo Jornal de Notícias. O documento, a que o Observador também teve acesso, serve apenas para a melhoria da segurança dos transportes, e não para o apuramento de culpas ou responsabilidades, segundo a legislação portuguesa.
Nesse dia, o professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, já jubilado, seguia no comboio Intercidades de Lisboa para Coimbra acompanhado da sua mulher, de 67 anos. Estavam habituados a fazer a viagem com frequência: compraram os bilhetes em Santa Apolónia pelas 18h43 e contavam chegar a Coimbra B às 21h29. Sentaram-se juntos nos lugares que lhes foram destinados: 72 e 78 da carruagem 22.
O comboio seguia com sete minutos de atraso. Por isso, quando pelas 21h31, com um céu negro do lado de fora, o sinal sonoro falou na estação de Coimbra B e o comboio parou, parecia mais do que certo que estaria no lugar devido. Não estava.
Segundo o relatório, nas imediações do apeadeiro de Bencanta, o revisor efetuou o aviso da próxima estação de paragem — Coimbra-B — como mandam os regulamentos. O casal, assim que ouviu o aviso, pôs-se a caminho do vestíbulo dianteiro da carruagem para descer na sua estação de destino. Dá-se o primeiro azar. O comboio é obrigado a parar antes da estação (de onde está a partir outro comboio) e o professor catedrático, pensando ter chegado ao fim da sua viagem, abre a porta manualmente. O casal sai do comboio, sem ter noção de onde está. Ao mesmo tempo, o operador de revisão e venda, ao aperceber-se da paragem, faz o que mandam os regulamentos: pelo sistema de interfonia avisa que o comboio não se encontra na estação, devendo os passageiros permanecer nos seus lugares.
Só que esse aviso, audível nas carruagens, não é ouvido no vestíbulo, como concluem os investigadores. Com noite escura, céu nublado, e sem iluminação suficiente, o revisor não deu pela saída dos passageiros. E os passageiros não perceberam que não estavam na estação. A mão abriu a porta e só fora da carruagem se aperceberam do erro.
Assim que descem, e fazem-no com relativa facilidade, como contaria a mulher, o casal percebe que não está onde devia. Ponderam regressar à carruagem, mas o marido teme que o comboio inicie a marcha durante a manobra. É perigoso. Acredita que é mais seguro fazer o resto do caminho a pé. A mulher concorda e seguem em direção à estação junto aos carris.
Ainda caminharam mais de 400 metros, durante cerca de 16 minutos, atravessando até a ponte metálica do Mondego. Pelas 21h48, um Alfa Pendular “passou no local provocando a queda da passageira, que ficou com ferimentos ligeiros, e colhendo o passageiro, causando-lhe ferimentos fatais”.
O Alfa, lê-se no relatório, é um comboio silencioso e o casal não terá sentido a sua aproximação. A mulher, no seu depoimento, conta que só se lembra de ver umas luzes e, depois, estar no chão, com dores na cabeça. É numa zona de curva pronunciada que “a deslocação de ar resultante da passagem desse comboio provoca, presumivelmente, o desequilíbrio da passageira”. Cerca de três metros mais à frente, o seu marido é colhido, morrendo no local.
A mulher do vice-reitor conta, durante a investigação, que se “recorda perfeitamente de terem passado pela ponte do Rio Mondego velho, por ter visualizado a água do rio por entre as travessas da linha e ter sentido bastante medo ao fazê-lo”. É depois da ponte, seguida de uma forte curva à esquerda, que surge finalmente a reta onde se encontra a plataforma da estação.
Nessa curva, onde se deu a colhida, os focos de iluminação não estavam ativos (nem era suposto estarem) e era o luar que guiava o casal. No local do acidente, havia espaço suficiente para se circular, o que poderia ter evitado a morte, mas, sem luz suficiente, marido e mulher tentaram guiar-se pelo carril exterior, colocando-se demasiado junto dele. Foi fatal.
Às 21h53, a passageira vê o marido caído uns metros à sua frente (seguiram sempre em fila indiana), liga ao 112, e mantém-se em linha durante cerca de 20 minutos. Às 22h20 é declarado o óbito de Sebastião Tavares de Pinho no local.
O relatório conclui que o acidente aconteceu devido a “uma sequência de erros dos passageiros”, e de perigos mal medidos, mas também porque os comboios Intercidades não tinham um sistema que impedisse a abertura manual das portas quando circulavam a menos de cinco quilómetros por hora” — alteração que faz parte das recomendações feitas à CP no relatório.
Contactada pelo Observador, a empresa não respondeu às questões do nosso jornal até à publicação deste texto.
(Artigo atualizado às 23:52 com informações do relatório do GPIAAF)