É preciso recuar àquele final de tarde de 10 de junho de 2017. Quis o universo, os deuses, que me cruzasse com Elza Soares no backstage do palco do NOS Primavera Sound, no Porto. Eu era apenas uma formiguinha, a trabalhar no festival. Ela era a mulher do fim do mundo. A banda paulistana que a acompanhava desde a gravação do seu primeiro álbum de originais, coisa que apenas aconteceu (imagine-se!) em 2015 – “foi feito na hora certa, graças a Deus”, diria em entrevista à Rita Cipriano – pegou na cadeira de rodas de Elza, elevando-a pelos degraus como Cleópatra, e pousou-a com leveza naquela plataforma ainda tapada pelas cortinas negras.
Fizeram um círculo à volta dela, de mãos dadas, e então o carioca Guilherme Kastrup, percussionista, maestro, metade íntima de Elza naquela jornada musical que catapultou A Mulher do Fim do Mundo para o topo das escolhas de tudo quanto era site especializado de música, falou. Obrigada foi a palavra que mais repetiu. Agradeceu por ali estarem todos juntos. Por terem chegado àquele concerto, numa altura em que a saúde de Elza se deteriorava a olhos vistos – a coluna, esse pilar jónico do nosso corpo, desmoronava-se como castelo de areia, apesar das várias intervenções cirúrgicas a que fora sujeita. Estar ali era um milagre. Uma bênção. E então fizeram um minuto de silêncio que para mim durou uma eternidade. Quedei-me muda, sem respirar. Senti que o mais leve suspiro seria absolutamente abjeto – afinal eu estava ali por acaso, sem pedir licença. Encolhi-me perante a grandeza de tal demonstração de união e de amor e, tentando parecer uma estátua, agradeci também a dádiva daquele momento.
O silêncio foi quebrado por um aplauso demorado. Elza Soares, de cabeleira roxa frondosa, lábios a condizer, ergueu o rosto e, com vigor no passo que não era seu, foi conduzida para o trono onde se iria sentar para cantar durante uma hora para uma colina de gente de várias cores, de várias idades, de vários sotaques, que se prostrou em bruaás de euforia e comoção a seus pés. O trono, esse banco altivo tapado por um pano negro que parecia rebentar do subsolo, tinha nele linhas nervosas e salientes, cor de carvão, que não eram mais do que as raízes de Elza cravadas no planeta fome, esse ventre que a dera à luz em 1930, na então favela da Moça Bonita, no Rio de Janeiro.
“Vamos fazer uma festa bonita” pedira. E o público assim respondeu à sua vontade. Creio que apenas consegui voltar a mim quando os primeiros versos soaram da sua voz rouca, Coração do mar / É terra que ninguém conhece. As lágrimas escorreram-me pelo rosto, velozes, vorazes, o corpo tremia-me quase tanto como agora treme a escrever estas palavras. Elza Soares estava ali, vinda do fim do mundo, renascida como anjo negro para nos dizer que queria cantar até morrer.
Não sei quantas vezes Elza renasceu durante os seus 91 anos. Teimava em viver como animal ferido de olhos magoados, ainda que conservassem uma certa meiguice profunda; rosto endurecido pela dor, voz firme no seu lamento, na sua revolta, e também – e sempre – no seu amor; garras espetadas no chão, esse solo sádico que lhe cobriu os pés de lama, o corpo de pancada, de estupro e de fome. O Brasil que a aclamou como uma das suas maiores vozes, foi o mesmo Brasil que a humilhou vezes sem conta. Ela era a mulher escorraçada pela imprensa e pela opinião pública, maldita Geni, porque tinha destruído a vida de Garrincha, esse príncipe do futebol de pernas tortas; era a miúda de 12 anos que fora obrigada pelo pai a casar com um homem dez anos mais velha que ela, Lourdes Antônio Soares, dando à luz cinco filhos dele. Ela era aquele rosto disforme dos anos 50 que se fora meter no programa “Calouros em Desfile”, porque queria pagar os medicamentos do filho doente, roupas largas da mãe caídas num corpo escanzelado, risos da audiência e a pergunta humilhante de Ary Barroso, “De que planeta você veio?”. Ela era o próprio retrato do Brasil, essa pátria mulata cheia de contradições onde a carne mais barata do mercado continua a ser a carne negra.
“O que me fez morrer vai me fazer voltar”. E assim foi. Mesmo depois daquele concerto no NOS Primavera Sound, em que Elza se virou para cada mulher na plateia para lhes dizer, olhos nos olhos, que chegava de sofrer caladas, “gemer só de prazer”, em que homenageou Gisberta Salce Júnior com o tema “ “Benedita”, arremata, arremata, arremata, e em que repetiu o verso de “Maria da Vila Matilde”, Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim, até a banda se calar, até a sua voz se confundir com a de todos nós num manifesto feminista sem género, até se ter tornado grito de revolta depois do assassinato de Marielle Franco, ela não parou. Viria a editar em 2018 novo álbum, Deus é Mulher e em 2019 o derradeiro Planeta Fome.
A sua última subida ao trono foi no carnaval de 2020, em que foi homenageada pela escola Mocidade Independente de Padre Miguel, na qual já tinha sido interprete entre 1973 e 1976. “Elza Deusa Soares”, assim se chamava o enredo do desfile e ela, Elza, assumiu-o desta feita vestida de branco. “Obrigado, Deusa. Nós não vamos sucumbir nunca!”, escreve hoje a escola despedindo-se da sua estrela. Não vamos sucumbir nunca – que outra frase poderia Elza merecer?