Nada foi igual depois de Rachel morrer. Há muito que a matriarca da família Swart estava doente, mas o seu desaparecimento foi um choque. O marido, que não saiu do seu lado enquanto padecia lentamente no quarto do primeiro andar, caiu no desespero enquanto lutava para compreender as últimas vontades da mulher, que incluíam um funeral e enterro judaicos longe do cemitério onde ele, Manie, branco e protestante, seria sepultado. A filha mais nova, Amor, de sete anos, negou o que tinha acontecido, dizendo a si mesma que a Mamã não estava morta, estava apenas a dormir. Os outros dois filhos, Anton e Astrid, mais velhos, fizeram o luto como se faz na idades deles, virados para o lado de dentro e lidando com o lado de fora com revolta e incompreensão.

É assim, com uma família destroçada e em luto, que começa o mais recente romance do sul-africano Damon Galgut, A Promessa. O livro, vencedor do Booker Prize de 2021, é a saga dos Swart, mas também da África do Sul, no seu duro caminho rumo a uma sociedade mais equalitária. A história começa em meados dos anos 80, quando o fim do apartheid era apenas uma miragem, e segue rumo aos anos 90, já depois de terminada a segregação, e aos anos 2000. É contada em quatro partes, que correspondem a quatro momentos importantes para a família e o seu país. Estas duas realidades estão intrinsecamente ligadas, uma espelhando a outra, uma determinando a outra, mas sem que os seus protagonistas se apercebam disso. Vivem o presente sem o distanciamento necessário, cabendo ao leitor fazer a análise isenta dos acontecimentos descritos.

Esta ligação entre as partes e o todo transparece na própria estrutura do romance. As vozes das personagens vão-se sucedendo umas às outras, sem marcas de pontuação que as distingam. São diferentes e têm características que as individualizam, mas a forma como se interligam faz com que funcionem também como uma espécie de voz coletiva, que narra uma história que não é apenas de cada um, mas de todos. Em termos temporais, o romance avança para trás e para frente, ligando diferentes momentos da mesma forma que relaciona diferentes personagens. Estes são familiares, mas também históricos e políticos (como a eleição de Thebo Mbeki, o segundo presidente após o fim do apartheid, em 1999; ou a demissão de Jacob Zuma, o quarto, em 2018). Juntos constituem o cenário sobre o qual a saga dos Swart se desenrola.

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Título: A Promessa
Autor: Damon Galgut
Tradutor: José Mário Silva
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 288

Depois do funeral de Rachel, os diferentes membros da família dispersam-se: Manie continua na quinta da família nos arredores de Pretória, investindo todo o seu tempo livre num jardim de répteis e na religião; Anton, um rapaz brilhante e um pouco estranho, foge da tropa e perde-se nas entranhas da África do Sul; Astrid, cujo poder reside na beleza, torna-se sua prisioneira; e Amor, a mais peculiar dos filhos de Manie e Rachel, que escapou a uma morte fulminante com menos um dedo do pé, sai da casa do pai e percorre o mundo, debatendo-se com a culpa e abnegação que marcam a sua existência. Estabelece-se primeiro em Londres, depois, de regresso à África do Sul, em Durban e, por fim, na Cidade do Cabo, onde trabalha como enfermeira junto de doentes com VIH.

De tempos a tempos, o seu pensamento recai sobre a quinta e a promessa que o pai fez à mãe e não quis cumprir: que a casa onde a criada negra vive — a dedicada Salome, que criou os três filhos de Rachel como se fossem seus e cuidou dela quando já não o conseguia fazer sozinha — ser-lhe-á dada. Amor estava no quarto da mãe quando esta fez o pai prometer que daria a casa a Salome, uma oferta insignificante (e uma casa insignificante) depois de tantos anos de serviço. É a única testemunha do juramento que todos tentaram calar (incluindo o próprio Manie, que confrontado com a situação nega ter proferido as palavras que a filha lhe atribui), mas que nunca desapareceu por completo. Ela é o velho fantasma que assombra os Swart, pairando sobre o romance como uma sombra, ligando as diferentes partes e dando sentido ao todo.

Claro que a promessa representa mais do que a promessa em si. É o sonho de uma África do Sul onde todos têm os mesmo direitos e onde é possível que uma mulher negra possa herdar uma casa e registá-la em seu nome. Essa é a verdadeira promessa que o romance esconde. A saga dos Swart é apenas uma desculpa e um lembrete do que pode acontecer se os velhos juramentos não forem cumpridos: o colapso a partir de dentro. Aos poucos, é isso que acontece à família, sobre a qual uma maldição parece ter recaído — depois da morte de Rachel, os seus membros vão desaparecendo lentamente. Manie morre de uma infeção provocada pela mordedura de uma das cobras do seu jardim de répteis; Astrid é assassinada por uma assaltante que lhe queria roubar o carro; e Anton, perdido no alcoolismo, mata-se com um tiro de espingarda. Até a tia Marina e o tio Ockie acabam por morrer, um depois do outro. Até que só sobra Amor.

Cada funeral reflete o que mudou no país desde a última vez que a família esteve reunida. “Não digam que nunca mudamos!”, exclama o narrador durante a cerimónia fúnebre de Astrid, indicando que a “ama negra se senta junto da família”, um lugar que antes lhe estava vedado. “Somos um país arco-íris, o que significa que na igreja se reuniu uma assembleia que é uma amálgama heterogénea, multicolorida e híbrida”, mas que se sente “impaciente e desconfortável”, porque, “como elementos antagónicos da tabela periódica”, os seus membros ocupam o mesmo espaço, mas não o mesmo grupo. A mudança de mentalidades raramente acompanha a mudança nas leis e será preciso muito mais do que trinta anos, o período percorrido pelo romance, para que essa alteração se faça sentir.

O quarto e último capítulo do livro começa a 16 de dezembro, o Dia da Reconciliação. O feriado, criado em 1995 depois do fim do apartheid para promover a reconciliação e unificação nacional, não foi escolhido ao acaso: é na última parte do romance que a promessa é finalmente cumprida e a maldição dos Swart levantada. Com a morte dos irmãos, Amor, o último membro da família, tem finalmente nas mãos o poder de cumprir a última vontade da mãe. A casa é finalmente dada a Salome e com ela a última parte da herança que Amor, desligada de tudo, deixou esquecida na conta de um banco. Esse ato é um símbolo de esperança, para a África do Sul, onde tudo de repente parece possível, e para a própria Amor, cuja vida, feita de viagens com destinos muitas vezes incertos, pareceu ser de algum modo guiada por esse único objetivo.

Sem o peso que lhe pesava sobre os ombros, a filha mais nova de Manie e Rachel, agora de meia idade, pode finalmente seguir o seu caminho, sem as amarras que a prendiam a um passado que nunca foi seu, mas que a continuava a puxar de volta à quinta nos arredores de Pretória. A reconciliação tem, assim, vários sentidos: é a assinatura de um acordo de paz entre os Swart e a família de Salome, mas também de Amor com a sua própria família, que a magoou e a levou a um isolamento voluntário. Prestes a partir pela última vez, Amor sente a esperança que um novo dia pode trazer:

“Veste de novo a camisa e abotoa-se. Sente-se outra vez normal e talvez até melhor do que antes. Deixa a urna ali, não vale a pena trazê-la para baixo, e começa a descer do telhado, passo a passo, em direção ao que acontecerá depois, seja o que isso for”.

Em A Promessa, Damon Galgut parte da história da família Swart para construir um inteligente e intrincado retrato da África do Sul nos últimos 30 anos. Começando em meados dos anos 80, antes do fim do apartheid, e terminando nos tempos atuais, 20 anos depois do seu término, o romance espelha e reflete sobre vários momentos decisivos na luta pelo fim da segregação, que a promessa feita por Rachel a Salome simboliza. Inicialmente impossível de concretizar, primeiro porque os negros não podiam herdar e depois porque a família evitou a todo o custo desfazer-se da velha casa onde a criada negra vivia, só quando a filha mais nova de Manie e Rachel, que integra uma outra geração, se torna a única herdeira do património da família é que o juramento é por fim cumprido.

Esse gesto conciliador entre duas famílias, uma branca e outra negra, coloca um ponto final na história dos Swart, que é idêntica à do seu país: foram muitas as desavenças, as tragédias e até a violência, que fizeram abrir um fosse entre os vários Swart. Literariamente, esta serve como símbolo maior de um futuro que, aos olhos de Galgut, pode ser pacificador. A mensagem final de A Promessa, não é pessimista, mas otimista e de esperança por uma África do Sul e um mundo melhor.