Num dos primeiros papéis de Tilda Swinton, no filme “Friendship’s Death” (1987), de Peter Wollen, a atriz interpreta um androide que vem de outro planeta numa missão de paz. O plano era aterrar no MIT e convencer uma série de especialistas da sua existência e de como isso poderia ser bom para a Terra. Mas, por erro, cai na Palestina, nos anos 1970, num clima de guerra, onde conhece um jornalista inglês (Bill Paterson) com quem inicia uma série de conversas profundas e existenciais. De certa forma, Friendship – a personagem de Swinton – está bem presente naquela que agora interpreta em “Memória”, o mais recente filme de Apichatpong Weerasethakul, filme que venceu o Prémio do Júri na edição 2021 do Festival de Cannes.
Tal como no filme de Wollen, Swinton aparece em “Memória” à procura de algo e é também uma estranha numa terra que não é a dela. É Jessica, uma inglesa que vive em Medellin, na Colômbia, e que está de passagem por Bogotá para visitar a irmã doente. Há uma curiosidade inerente a Jessica, misturada com um desconforto em perceber o que a rodeia. É uma personagem firme, com uma fragilidade à flor da pele que é trabalhada a partir de um som. Um som que domina o filme.
Eis o ponto de partida para “Memória”: um som. Este é o primeiro filme do realizador tailandês fora do seu país, depois de “Cemitério do Esplendor” (2015) ter sido censurado por lá, o que levou à decisão de Weerasethakul de ir à procura de outros mundos. A Colômbia é, para o cineasta, tal como para a personagem do filme, um local estranho. E, tal como ela, toma-o como seu. A presença de um som durante o sono, em 2016, levou Weerasethakul a criar uma obra à procura desse mesmo som. Curiosidade: o próprio já revelou em entrevistas que deixou de ouvir esse som durante a rodagem de “Memória”.
[o trailer de “Memória”:]
Este som é uma síndroma estudado. Tem o assustador nome em inglês de “Exploding Head Syndrome”. No filme, é representado por uma batida metálica, forte, estranhamente seca, que se faz ouvir logo no arranque do filme. Tilda Swinton não sabe de onde vem, nem o que é, nem o que o está a causar, e resolve ir à sua procura. Tal como foi à procura do realizador.
O desejo de trabalhar com ele é antigo. Bem expresso na belíssima carta que escreveu ao filho em 2006, onde menciona o que sentiu quando viu “Febre Tropical”, o filme de 2004 que, na altura, constou em muitas listas de melhores do ano e apresentou Weerasethakul, e a sua forma de misturar passado, presente e futuro, memória com a ficção e o real com o imaterial, a um mundo que não aprenderia a dizer o seu nome, mas aprenderia a ver os seus filmes. No passado já tinham tentado colaborar, mas para o realizador só agora, fora do seu país, fazia real sentido dar um filme a Swinton.
Dá-lhe um filme e ela vai à procura de um som. E é aqui que “Memória” se transforma, onde os desejos puros de uma narrativa terminam e a experiência começa. Tal como noutros filmes do realizador, há uma recusa em explicar. O espectador tem de aceitar o que acontece e, a ele, é-lhe também exigido atenção e paciência. Nesta comunhão existe a calma – a paz – para se viver a experiência de um filme de Weerasethakul. O som não é mais do que um instrumento para levar Tilda – e o espectador – a locais inesperados. Seja ele um estúdio de gravação e a procura da replicação desse som, a tentativa de explicar – e encontrar uma cura – junto de um médico ou o encontro com um pescador e a sua perceção de memória.
A experiência é, como em quase todas as obras do realizador, uma viagem ao desconhecido. Não será estranho para quem viu “O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores”, o maravilhoso filme de 2010 que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes, onde espíritos se sentam à mesa com os humanos – e connosco –, ou “Síndromas e Um Século”, quando o sistema de ventilação de um hospital parece puxar o espectador para dentro do filme – e dele nunca mais sair – ou até mesmo daquela sensação de que a doença misteriosa de “Cemitério do Esplendor” pode muito bem ser a nossa cura. “Memória” torna um som misterioso numa forma de nos reconectarmos com o mundo que não vemos, com as experiências que não são nossas.
Quando Tilda Swinton percebe – e isto não é um spoiler, não se preocupe – que a sua experiência vivida pode ser muito mais do que as próprias memórias, o espectador vivencia um dos momentos mais mágicos do cinema em anos. Há qualquer coisa que Apichatpong Weerasethakul nos quer dizer e que não pode ser explicado, só vivido a ver os seus filmes. De preferência no cinema, que é onde este filme habita: nos Estados Unidos, a distribuidora promete que “Memória” andará em digressão, de cidade em cidade, durante o tempo que for necessário, e que nunca chegará às plataformas de streaming; por cá não sabemos se terá vida depois das salas.
A procura de Swinton pela cura e pela origem do som que ouve não é muito diferente do desejo de contacto do seu androide Friendship. Ambas descobrem algo no mundo, nas relações humanas e suas experiências, que não podem ver, mas sentir. Que não vale a pena perceber, é melhor experienciar. O desconhecido — e sobretudo o desconhecido de Apichatpong Weerasethakul — é um local fascinante. E “Memória” é um ótimo sítio para se viver. Por duas horas, numa sala de cinema.