O desejo de ser famoso, de permanecer na memória alheia como mito ou lenda, sempre foi um dos mais terríveis desejos humanos, por isso os Gregos deram-lhe um lugar de deusa no seu Olimpo. Era Pheme, uma divindade que tanto podia ser uma bela e sedutora mulher que contava os feitos dos heróis, como um monstro de mil olhos e ouvidos que espalhava boatos, mentiras, escândalos e destruição. Ainda assim o desejo de fama não diminuiu na humanidade — pelo contrário, a tecnologia, a comunicação, os aparelhos de reprodução de imagens parecem tê-lo exacerbado até ao paroxismo.
Quem nunca desejou a fama, quem nunca na vida representou um ou muitos papéis para ser socialmente aceite, ou simplesmente para conquistar objetivos, quem nunca competiu para ser o centro das atenções que atire a primeira pedra a esta deliciosa comédia do mais britânico dos britânicos, o melhor exemplar da fina-flor da “englishness”, apesar das suas origens humildes: o dramaturgo, ator, cantor, bailarino Noël Coward (1899-1973). O Amor é tão Simples é a adaptação impossível do titulo original Present Laughter, expressão retirada da peça Twelfth Night de Shakespeare. Uma peça escrita em seis dias no ano de 1939, estreada em 1942, que já foi representada dezenas e dezenas de vezes por esse mundo fora e até teve uma adaptação para telefilme, em 1981.
Diogo Infante, atual diretor do Teatro da Trindade, e agora na dupla qualidade de encenador-ator, fá-la estrear-se esta quinta-feira, pelas 21 horas, nesta sala lisboeta. “Queríamos reabrir com um sorriso”, afirmou em conversa com os jornalistas, onde contou também que, em 2019, foi com o filho a Londres e viu a mais recente adaptação do texto de Coward no Old Vic Theatre, e decidiu que queria fazer esta peça. Uma obra cheia de referências auto-biográficas do dramaturgo inglês, que sempre viveu às claras a sua homossexualidade, num tempo em que esta era proibida, mas sempre se recusou a fazer disso um panfleto ou sequer a falar do assunto em público “porque não queria que algumas velhinhas da província soubessem”, ironizava. Diogo Infante assume que também ele sente este texto “como auto-referencial”.
Esta farsa com laivos de melancolia, que não acredita que a felicidade seja possível, ganhou corpo com um conjunto de de dez atores e atrizes, e conta-nos a história de Guilherme Andrade, um ator famoso, adulado, egocêntrico, que vive uma vida de enganos e afetos precipitados com mulheres, para esconder a sua homossexualidade e a sua imensa fragilidade: sente-se apavorado com o envelhecimento, com a solidão e, pressentimos, com os logros sobre os quais ergueu a sua existência.
A sua casa e a sua vida são um corre-corre de gente a entrar e a sair, mulheres e homens que o idolatram, que têm fantasias amorosas com ele, o seu grupo de “amigos” mas na verdade vivendo na dependência da fama e sucesso de Andrade como ator de “teatro comercial”. Os seus três empregados, a puritana secretária Mónica, a misteriosa e sarcástica Ludmila e o espertalhão Quim, (Rita Salema, Ana Cloe e Flávio Gil) parecem ser os únicos que verdadeiramente o conhecem e estimam e, por isso são os mais sábios, logo os mais divertidos desta comédia de enganos, cheia de wit (humor inteligente e malicioso, cheio de jogos de palavras e subtilezas), que tanta falta nos faz.
Entre o riso, a melancolia e os prazeres do sub-texto
Apesar do elenco de atores e atrizes experientes em vários géneros teatrais, apesar dos prazeres do riso que nos proporciona a vida de enganos de Guilherme Andrade, que nas vésperas da sua partida para uma tournée em África, vê a sua vida a andar para trás devido a um conjunto de desencontros, intrigas, jogos de interesses e manipulações várias. Apesar deste enredo cheio de detalhes, sugestões e imagens risíveis, como a fotografia de Guilherme Andrade/Diogo Infante, na parede da sala, que ele todos os dias contempla como se se persignasse em face de um Cristo qualquer, a sua coleção de roupões de seda, que o fazem parecer flutuar como um deus sobre o palco, ou a paródia ao “teatro de autor”, e aos jovens candidatos a dramaturgos como Roberto Moura (Cristovão Campos) obcecado com Tchékov e em levá-lo a fazer “teatro sério”. Dizíamos, um dos grandes prazeres desta peça são os seus vários níveis de sub-texto, as múltiplas camadas de significado e leituras possíveis (como em todas as grandes obras), um virtuoso domínio da linguagem e dos seus labirintos, que hoje querem fazer-nos acreditar que pode ser uma coisa “neutra”.
A obra de Noël Coward, também conhecido pelos clássicos Design for a Living ou Private Lives (levado à cena, em 2019, pelos Artistas Unidos) é um maravilhoso exemplo de como a linguagem jamais poderá ser neutra, assética, sem género. Pelo contrário, é a falta de neutralidade que constitui a grande riqueza da humanidade, e essa coisa redentora que é o riso e que só através dele podemos entrever um pouco das vidas íntimas e solitárias de cada um, não obstante a sua fama, numero de seguidores e riqueza.
Diogo Infante confessa que a experiência de ser simultaneamente encenador e ator “foi extenuante e não é para repetir nos tempos que correm”. Apesar do que se perde nas traduções, sobretudo nestes textos cheios de subtilezas, meta-linguagem, comédia dentro da comédia, o elenco segura a história do principio ao fim. Infante optou por situar o texto nos anos 40 em Portugal e isso permite-lhe evocar atores e salas de teatro, lançar algumas farpas ao meio teatral atual, embora defenda que “não quer fazer polémica, apenas abrir espaço à discussão sobre o que é o papel do teatro em Portugal hoje em dia, para que públicos, para que nichos, o que é isso de teatro comercial logo conotado de superficial e teatro experimental”.
Ora O Amor é tão Simples — porque não é nada simples e talvez seja mesmo impossível — apresenta-nos sem pretensões a possibilidade de conhecer um grande texto de um grande dramaturgo, que entre as duas guerras e até aos anos 60 foi, de facto, um encantador das massas. Entre 1939 e 42, trabalhou em Paris para o governo britânico, nos serviços de propaganda, até que o próprio Winston Churchill chegou à conclusão que Noël Coward faria mais pelo esforço de guerra se fosse atuar e cantar para as tropas do país. Provavelmente tinha razão.
A peça que conta ainda com a presença dos atores e atrizes Henriqueta de Sá, Ana Brito e Cunha, Miguel Raposo, Tó Melo e Patrícia Tavares. Os figurinos são de José António Tenente e a música de Nuno Rafael e Filipe Melo.
O espetáculo estará em cena até 03 de abril, de quarta a sábado pelas 21 horas e domingo pelas 16h30, na sala Carmen Dolores no Teatro da Trindade, em Lisboa.