“Onde é que agora se conhecem pessoas?” É uma pergunta legítima no universo dos solteiros, sobretudo depois de a pandemia ter encerrado durante meses bares, discotecas e afins. A partir de uma certa idade (e não estou a chamar velho a ninguém), quando se tem uma vida profissional estável, um grupo sólido de amigos e uma rotina, ninguém se cruza com pessoas novas ao ritmo com que isso acontecia na faculdade, aos 20 e poucos anos. O que resta então? As aplicações de encontros.
Numa altura em que já se faz tudo online — compras, transferências bancárias, cursos, etc. —, continuar a olhar para estas plataformas de lado é puro preconceito. Ainda não temos anos suficientes disto para dizer que há histórias de amor que saem do Tinder e são para a vida toda. Porém, somam-se cada vez mais casamentos e filhos tinderianos. Há muitas pessoas ditas normais de um lado e do outro do ecrã que procuram aquilo que procurariam igualmente nas ruas da cidade, se na vida real fosse tão fácil convidar ou ser convidado para um copo ou jantar como nos episódios de “O Sexo e a Cidade”. Por outro lado, o mundo digital também tem muitos seres descompensados, sociopatas e vigaristas mas… I couldn’t help but wonder… não são exatamente os mesmos com os quais nos cruzamos na vida real? Desculpem, ainda estava no universo de “O Sexo e a Cidade”.
Vamos então ao que interessa que eu não sou a Carrie Bradshaw e isto não é uma coluna amorosa. Estamos aqui para falar de “O Impostor do Tinder”, o tema do momento e o documentário que ocupa o primeiro lugar do top dos conteúdos mais vistos da Netflix em Portugal (e em dezenas de outros países). O título não deixa grandes mistérios: esta é a história de um homem que se fez passar por aquilo que não é na rede de encontros mais famosa do mundo. Rico, herdeiro de um império de diamantes com estadias em hotéis de luxo, viagens em aviões privados, jantares em restaurantes onde toda a gente o conhece pelo nome: Simon Leviev.
[o trailer de “O Impostor do Tinder”:]
https://www.youtube.com/watch?v=_R3LWM_Vt70
Com um certo charme e fotos apelativas, este pseudo multi-milionário israelita consegue inúmeros swipes para a direita (o que se faz quando há interesse na pessoa que está do outro lado). Quando o swipe é recíproco, há match e, se há match, as duas pessoas podem começar a falar. É o que faz Cecilie, a norueguesa que começa a narrar a idílica história de amor que começou na app. O primeiro encontro é num hotel de cinco estrelas, a química é imediata. Cecilie, que se descreve como uma “expert do Tinder”, fica fascinada e deixa-se levar por um convite para uma viagem com este playboy.
A história depressa escala, com ramos de flores constantemente enviados a Cecilie, mensagens de amor, áudios de WhatsApp, visitas surpresa — porque Simon é um magnata importantíssimo e está sempre a viajar —, um convite para irem viver juntos e a procura por um apartamento que, segundo indicações dele, pode chegar aos 15 mil dólares (pouco mais de 13 mil euros) por mês. A jovem vive um conto de fadas, mas a magia depressa se esfuma, e o conto de fadas vira terror. Simon começa a enviar fotos e vídeos de um suposto ataque ao seu guarda-costas e a ele próprio porque, recordemos, este espertalhão diz comandar um império de diamantes, logo tem muitos e mauzões inimigos.
Entra então em ação o plano “extorquir dinheiro”. Pobre Simon está em perigo e não pode usar os seus cartões de crédito. Cecilie, cega pela paixão, começa a transferir dinheiro para aquele que acha ser o homem da sua vida. E depois faz um empréstimo. E depois arranja mais um cartão. E depois mais outro. E ainda outro. Presa numa bola de neve de dívidas e de mentiras, só entende no que se meteu quando percebe que as transferências que Simon diz ter feito para a reembolsar nunca chegam. E, pior, este homem já tem várias queixas por fraude, descobre ela a seguir.
O homem não é um novato nisto, o esquema está montado há anos e muito bem limado. Enquanto Cecilie não dormia e fazia todas as manobras para arranjar dinheiro para o namorado que estava em perigo de vida, ele andava numa espécie de digressão pela Europa, nos melhores hotéis e restaurantes, tudo regado a champanhe e pago com os cartões de Cecilie. Não andava sozinho, como é óbvio. Por esta altura já tinha entrado em cena Pernilla, uma sueca que, se estava agora a aproveitar a vida de luxo do novo amigo (aqui nunca há relação amorosa), depressa passaria a acumular dívidas, engolida pelas mesmas histórias estapafúrdias impingidas a Cecilie.
Vistas de fora, as narrativas parecem tão surreais que são difíceis de entender. No entanto, há um trabalho que este impostor faz antes de começar a pedir dinheiro — primeiro dá a provar aquela vida cheia de glamour e não há nada ali que pareça falso e só depois é que ataca. Não há aqui amadorismo: até as pesquisas no Google devolvem resultados sobre o tal império de diamantes, o seu cargo e a família. Tudo fabricado, claro.
O documentário de quase duas horas tem o tempo perfeito. Não arrasta a história, tem ritmo e as narrativas que se sobrepõem estão bem explicadas e sustentadas com dezenas de vídeos, mensagens de voz e texto. E quando “O Impostor do Tinder” parece apenas uma história triste de mulheres enganadas por um traste, evoluímos para o nível thriller, com ameaças e promessas de vingança a chegaram através de áudios agressivos.
Ao partilhar a sua história com o jornal norueguês VG, Cecilie abre a caixa de pandora. De repente descobre-se uma condenação e pena de prisão por fraude, chega-se ao nome de Pernilla e à verdadeira identidade deste homem. Shimon Hayut é, de facto, israelita mas não é herdeiro de absolutamente nada. No seu país é procurado pela polícia para responder a uma data de outras fraudes. Feita a investigação, os jornalistas do “VG” publicam a reportagem e a resposta é muito mais explosiva e internacional do que qualquer um podia esperar. Aparecem mais e mais mulheres, de vários países, enganadas sempre através das mesmas histórias.
O mais surreal de tudo é o facto de, mesmo com queixas em vários pontos, a polícia de nenhum país parecer muito empenhada em encontrar e travar o vigarista. Isto até ser uma nova mulher, a holandesa Ayleen, a juntar provas contra ele — e a ficar-lhe com a roupa de luxo que passa a vender no ebay, uma vingança saborosa mas que não chega aos 140 mil que ela lhe foi dando — até ser finalmente emitido um mandato da Interpol para a detenção de Shimon Hayut. Além da exposição pública e de entretanto ter sido banido das aplicações de encontros, pouco ou nada lhe acontece. Já as vítimas — que, como sempre, tiveram de engolir os muitos insultos nas redes sociais, do “burras” ao “bem feito”, passando pelo “alpinista social” — continuam a pagar as respetivas dívidas.
Ainda assim, Cecilie ainda recorre à app. Podia ter-se cruzado com a mesma pessoa num restaurante ou na rua e a história teria sido exatamente igual. Portanto, se depois de tudo isto, ela acredita no amor em tempos de Tinder, quem somos nós para duvidar?